A vida íntima de Sherlock Holmes que o cinema tenta desvendar 

<em>A Vida íntima de Sherlock Holmes</em>, de Billy Wilder, faz 50 anos nesta quinta-feira. Recentemente, estreou na Netflix o filme <em>Enola Holmes</em>, o que faz perguntar: até que ponto estica o culto do detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle?
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Uma das mais famosas moradas da literatura, 221b Baker Street, que até aos dias de hoje já conheceu várias referências televisivas e cinematográficas, teve em 1970 uma abordagem pouco comum, assinada por um dos grandes cineastas e argumentistas de Hollywood: Billy Wilder. A Vida Íntima de Sherlock Holmes, a completar agora meio século, entra no apartamento que o célebre detetive partilha com o biógrafo Dr. Watson para mostrar, em vez da lenda, o homem melancólico, viciado em cocaína (quando não tem nenhum caso em mãos) e sexualmente não resolvido.

Numa altura em que vemos o universo policial de Sir Athur Conan Doyle ramificar-se com a estreia recente do filme juvenil Enola Holmes - a personagem criada por Nancy Springer, que quis dar uma irmã mais nova a Sherlock Holmes -, impõe-se a pergunta: haverá limites para a exploração do culto sherlockiano?

Se a questão fosse posta a Wilder, é provável que este respondesse com o exemplo do seu particular interesse na suposta homossexualidade reprimida de Holmes. Segundo a teoria defendida pelo realizador de Quanto mais Quente Melhor, o consumo de cocaína por parte do detetive tinha origem nesse recalque da preferência sexual. De resto, uma visão que ficou mais ou menos explícita no "incompleto", mas elegante e subtil, A Vida Íntima de Sherlock Holmes, filme que nunca foi apresentado na sua versão integral, tendo sofrido vários cortes por imperativos da produção - um motivo de tristeza para Wilder, tratando-se de um projeto muito pessoal que acalentava desde os anos de 1950.

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Este Holmes, interpretado por Robert Stephens, não é o herói vitoriano que resolve modelarmente um enigma, tal como Watson (Colin Blakely) o descreve na sua prosa, mas sim o homem falível que se deixa levar no jogo de ilusão de uma mulher desesperada. Gabrielle Valladon (Geneviève Page) recorre aos seus serviços para encontrar o marido desaparecido, e nesta aventura escocesa, que até envolve o monstro do lago Ness, o detetive será manipulado num esquema de intriga internacional...

Enquanto a maioria das adaptações do universo de Conan Doyle coloca a ênfase na perspicácia científica de Holmes, Wilder mostra o seu talento ameaçado pelo mundo em mudança, no final do século XIX, e os processos de uma guerra moderna. "Pegaste nos meus meros exercícios de lógica e embelezaste-os", queixa-se ele a Watson, e é de facto no contraponto de tal romantismo literário, longe de raciocínios elevados (a não ser o divertido estudo de beatas de cigarro), que o retrato vinga num tom nostálgico, com o maravilhoso revestimento musical de Miklós Rózsa.

Antes da entrada em cena do mistério Gabrielle Valladon dá-se aquele que será o episódio-chave do "tema" de Billy Wilder. Holmes é convidado para assistir à performance de uma renomada bailarina russa e, no final, o diretor do ballet chama-o ao camarim da dita para fazer uma proposta um tanto ou quanto absurda: por razões de genética superior, Madame Petrova quer que Holmes lhe faça um filho - assim mesmo - em troca de um Stradivarius. Oferta que o detetive declina dizendo, por meias-palavras, estar numa relação amorosa com Watson ("um solteirão a viver há cinco anos com outro solteirão... Tchaikovsky não é um caso isolado").

Quando o médico toma conhecimento da mentira do companheiro de aventuras, Holmes responde à zanga e ao medo dos rumores sem grande inquietação, mas fica no ar um não-dito ambíguo que atravessa o filme de uma ponta à outra pelo modo como surge nas imagens a intimidade da vida conjunta de Watson e o seu biografado. Inclusive, uma das cenas que acabaram por ser cortadas tinha o diretor do ballet a visitar o 221b Baker Street com um ramo de flores e o violino recusado, explicando a Holmes que Madame Petrova, apesar do mal-entendido, fazia questão de deixar com ele o Stradivarius. Quanto às flores, seriam para Watson, com a sugestão de um futuro encontro...

Mark Gatiss, um dos criadores da série Sherlock, com uma das melhores encarnações da personagem por Benedict Cumberbatch, é o primeiro a citar A Vida Íntima de Sherlock Holmes como a sua principal fonte de inspiração, sublinhando a beleza com que o filme de Wilder trata o vínculo entre o detetive e Dr. Watson. E a verdade é que nenhuma versão trabalhou tão bem as nuances da amizade, desde logo, por ser o carisma do protagonista e a resolução mental dos casos que costumam dominar a abordagem.

Para além de Cumberbatch, Henry Cavill, com a sua discreta presença em Enola Holmes, passou a integrar uma longa lista de intérpretes de Sherlock Holmes, desde os nomes sagrados Jeremy Brett e Basil Rathbone, aos mais recentes Ian McKellen (Mr. Holmes) e Jonny Lee Miller (Elementary), passando por Peter Cushing, Douglas Wilmer, Christopher Plummer, Michael Cane, Roger Moore, Christopher Lee (que no filme de Billy Wilder veste a pele de Mycroft Holmes) e, entre outros, Robert Downey Jr., o rosto da versão pop e espalhafatosa de Guy Ritchie.

Em matéria de árvore genealógica, Gene Wilder terá sido dos primeiros a inventar um outro irmão, que não Mycroft, para o ilustre detetive - chamou-lhe Sigerson Holmes, na comédia As Aventuras do Irmão mais Esperto de Sherlock Holmes (1975), realizada pelo próprio. John Cleese seguiu o exemplo e também tomou a liberdade de lhe atribuir um neto, Arthur Sherlock-Holmes, em The Strange Case of the End of Civilization as We Know it (1977), de Joseph McGrath.

Mas se há algo que a aventura juvenil da irmã de Sherlock veio mesmo confirmar é que a criação de Conan Doyle, para lá do mecanismo da narrativa detetivesca, continua a ser um fascínio para todos os públicos; já o Young Sherlock Holmes (1985), de Barry Levinson, e a animação da Disney Rato Basílio, o Grande Mestre dos Detectives o tinham provado... A cada um o seu Sherlock.

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