A velhinha abusada e o grandalhão grosseiro
Se calhar precisamos de pensar menos pelo olho da câmara. Por exemplo, uma velhinha inglesa de malinha no braço, chapéu a condizer com o casaquinho azul, seguia o seu caminho trôpego quando foi abalroada por um estivador alourado.
A nonagenária (mais exatamente, 92 anos) tentou contornar a bisarma mas esta ignorou-a, cortou-lhe o passo, entaipou-a mas não a tapou definitivamente: uma câmara filmou a senhora a reaparecer, sempre trôpega mas obstinada. Entretanto, o armário com melena nem deu pelo incidente.
O caso é grave mas talvez só denote uma decadência nos costumes. Era eu novo, nos finais dos anos 60, um faz-tudo para ganhar a vida, e trabalhei como barman no Club des Solitaires, no Trocadéro, Paris. O clube era numa vivenda elegante, e os sócios, cinquentões e quarentonas, e vice-versa, solitários por condição do clube, procuravam corações (e talvez mais) gémeos, reunidos em atividades próprias de salões literários. Uma das atividade era uma conferência semanal.
Lembro-me justamente de uma, subordinada ao momentoso problema que se tem agravado: "Les bonnes manières sont-elles finies?" Ter-se-ão perdido as boas maneiras? Hélàs...
Mais de dez anos depois, regressado a Portugal, trabalhei no Diário Popular, no Bairro Alto, com o desenhador José de Lemos. Era um homem pequenino e suave, de chapéu de feltro, fato e colete, que chegava à redação do jornal com uma indignação repetida. Em tudo o mais ele era doce, o seu traço era poético. Mas a indignação era quotidiana: no elétrico cheio, era cada vez mais raro um cavalheiro levantar-se quando entrava uma senhora! Isto para dizer que a ignomínia contada no início desta crónica era de esperar.
O conferencista parisiense alertou, o elétrico 28 ao subir a calçada do Combro era palco do aviltamento das relações sociais e, em meio século, inevitavelmente tudo isso desaguou nos jardins do Palácio de Windsor, na sexta-feira passada.
Sim, a velhinha abusada foi a rainha Isabel II e o grandalhão grosseiro foi o presidente Donald Trump. No entanto, não deveríamos deixar que as nossas opiniões políticas toldassem o nosso aviso. Eu, por exemplo, republicano dos quatro costados, não me deixei levar pela minha natural antipatia pelas rainhas. Distanciei-me das minhas convicções profundas e de toda a cena concluí ter-se passado o que se segue, sem tomar partido.
A herdeira da Casa de Windsor treinava o seu grand danois tentando, em vão, incutir-lhe maneiras e/ou o locatário da Casa Branca tentava, também em vão, dominar a difícil arte de caminhar como uma pessoa urbana. Só isso. Vejam o vídeo com atenção e tentem contradizer-me. Também será em vão, já vos aviso.
Ora o jornal The New York Times postou o vídeo, incitou à emoção britânica pelo ultraje à soberana e tudo resultou no costumeiro ataque à grosseria de Donald John Trump. Não desminto. Sim, entre gajos, ele diz por onde se agarram as mulheres. Sim, ele gozou, de palanque, com os tremores gestuais de um jornalista deficiente motor. Sim, escapado à guerra do Vietname por favores de rico, ele acusou de cobarde, por ter sido aprisionado, um herói de guerra, ferido em combate.
Sim, em plena televisão, ele desprezou a mãe de um soldado americano morto em combate. Sim, ele implicou o pai de um adversário, o republicano Ted Cruz, no assassínio de Kennedy, tal como garantiu que outro adversário, o democrata Barack Obama, não era americano, sem que para qualquer dos casos desse a mínima prova. Sim, no dia em que ele é convidado a ir a Londres...
Machismo, insulto ao mais fraco, perfídia de cobarde com valente, falta de compaixão e mentira sem vergonha, enfim, desculpem o meu inglês: para Donald John Trump (esse cidadão, com um certo e determinado número de Segurança Social que nunca poria aqui porque sei lá se é verdadeiro), les bonnes manières sont bien finies. E já o eram provavelmente quando eu ouvia conferências sobre o assunto.
Mas a questão é: sobre Donald Trump, o político, vamos continuar quanto tempo mais a julgá-lo como se fôssemos, sem desprimor, Paula Bobone? As boas maneiras, pela sua própria natureza cordata, exprimem as convenções sociais da maioria em certo momento histórico. Essa maioria, Trump despreza e até acicata a crítica dela contra ele.
O desiderato de Trump não é simpatia dos outros por si: é o poder. O mais poder possível - aquele que só é alcançável com os companheiros adequados. Leiam o texto de Paulo Pena sobre a extrema-direita britânica, a ala política que, de facto, interessa ao atual presidente americano.
E, no entanto, sim: interessa ver como Trump atropelou a velhinha, na sexta-feira passada. Não tanto pela falta de educação, mas pelo desprezo pelo outro. Se acontece esse outro ser uma rainha, calculem o que vem aí para todos. O desprezo pelo outro, em regras de etiqueta, pode ser só má-educação. Em política começa a ser tempo de lhe chamar pré-fascismo.