A última vaga de Agnès
Aos 90 anos encontramos uma artista a olhar para a sua vida de artista. É mais do mesmo? Tem quase a mesma fórmula do documentário de As Praias de Agnès (2008) e um pouco de Olhares Lugares (2007), este último realizado a meias com o artista JR? Talvez sim, mas Varda, ou melhor, Agnès a olhar para o seu cinema (e para o seu trabalho como artista plástica) é sempre nos antípodas do auto-satisfeito, é sempre uma grande ocasião de cinema.
Neste novo documentário já adquirido pela Midas Filmes para estrear nas salas a 30 de maio, a cineasta que hoje disse adeus à vida olha para o seu trabalho com uma rugosidade terna. É como se fosse uma "última volta" pelas suas memórias de produção e de filmagem. E quando ela examina o seu cinema é impossível afastar-se dos seus: a família, o amor por Jacques Demy, e os amigos. A mulher a confrontar-se com a realizadora.
Desse confronto sai uma viagem com excertos dos filmes, material inédito, imagens de bastidores, depoimentos, encontros (abençoado o seu duelo de palavras com a atriz Sandrine Bonnaire, a heroína de Sem Eira nem Beira) e pequenas colagens. Mas também as "explicações" de como via o mundo e as transformações do seu cinema, da forma como começou, à descoberta da América, passando pela revolução das câmaras digitais a partir de Os Respigadores e A Respigadora (2000). Como se o olhar de Varda fosse uma causa-consequência de uma evolução estética. Um filme de memória afetiva, portanto, pontuado por uma narração e uma voltagem de montagem que funcionam sobretudo para quem quer ainda respigar a sua obra.
O gesto de cinema de Varda aqui é tão aberto como pedagógico, é verdade, mas como possibilidade de obra-testamento é particularmente comovente, nem que seja por uma ideia de apanharmos uma boleia mirabolante pelo seu processo mental. Nada é mais bonito que uma cineasta que influenciou gerações conseguir no pique da sua terceira idade (ou quarta...) ter olhos para um método muito seu. Em boa verdade, é um ato de partilha, nomeadamente quando partilha o prazer que teve quando voltou a encontrar a dádiva da amizade, neste caso com JR, ou quando, em jeito de inconfidência, mostrou o Método de Robert De Niro quando o filmou em 1995 em Les Cent et Une Nuits de Simon Cinema.
Quem quiser implicar com Varda par Agnès poderá ser picuinhas e descobrir aqui e ali marcas de adenda ou de nota de rodapé. É legítimo, sim, mas quem entrar de alma e coração tem outras oferendas para receber, como toda a torrencial gratificação artesanal no próprio esquema de viagem pelas imagens. Caderno de notas audiovisual? Sem problemas! A única eventual limitação cinematográfica é provavelmente a sensação de que raramente Agnés questiona Varda. Nesse detalhe, lembramo-nos que Varda questionava muito Agnés em As Praias de Agnés. De facto, imaginamos o que poderíamos encontrar aqui se a cadência das imagens de arquivo tivesse uma pujança bem mais interpelativa...
No geral, é um filme sem receios do seu dispositivo de masterclasse com ilustrações, feito para ficarmos a gostar mais de Agnès Varda. Agora, depois da sua morte, será sempre um manual lindíssimo para consultarmos cada vez que quisermos reencontrar a sua arte visual. Touché!