A última vaga de Agnès

O DN já viu <em>Varda par </em><em>Agnè</em>s, documentário sobre a sua criação artística, mostrado em estreia francesa há uma semana no Festival Cinéma du Réel. Uma produção da ARTE feita com investimento de nomes fortes de Hollywood. Foi aplaudido de pé...
Publicado a
Atualizado a

Aos 90 anos encontramos uma artista a olhar para a sua vida de artista. É mais do mesmo? Tem quase a mesma fórmula do documentário de As Praias de Agnès (2008) e um pouco de Olhares Lugares (2007), este último realizado a meias com o artista JR? Talvez sim, mas Varda, ou melhor, Agnès a olhar para o seu cinema (e para o seu trabalho como artista plástica) é sempre nos antípodas do auto-satisfeito, é sempre uma grande ocasião de cinema.

Neste novo documentário já adquirido pela Midas Filmes para estrear nas salas a 30 de maio, a cineasta que hoje disse adeus à vida olha para o seu trabalho com uma rugosidade terna. É como se fosse uma "última volta" pelas suas memórias de produção e de filmagem. E quando ela examina o seu cinema é impossível afastar-se dos seus: a família, o amor por Jacques Demy, e os amigos. A mulher a confrontar-se com a realizadora.

Desse confronto sai uma viagem com excertos dos filmes, material inédito, imagens de bastidores, depoimentos, encontros (abençoado o seu duelo de palavras com a atriz Sandrine Bonnaire, a heroína de Sem Eira nem Beira) e pequenas colagens. Mas também as "explicações" de como via o mundo e as transformações do seu cinema, da forma como começou, à descoberta da América, passando pela revolução das câmaras digitais a partir de Os Respigadores e A Respigadora (2000). Como se o olhar de Varda fosse uma causa-consequência de uma evolução estética. Um filme de memória afetiva, portanto, pontuado por uma narração e uma voltagem de montagem que funcionam sobretudo para quem quer ainda respigar a sua obra.

O gesto de cinema de Varda aqui é tão aberto como pedagógico, é verdade, mas como possibilidade de obra-testamento é particularmente comovente, nem que seja por uma ideia de apanharmos uma boleia mirabolante pelo seu processo mental. Nada é mais bonito que uma cineasta que influenciou gerações conseguir no pique da sua terceira idade (ou quarta...) ter olhos para um método muito seu. Em boa verdade, é um ato de partilha, nomeadamente quando partilha o prazer que teve quando voltou a encontrar a dádiva da amizade, neste caso com JR, ou quando, em jeito de inconfidência, mostrou o Método de Robert De Niro quando o filmou em 1995 em Les Cent et Une Nuits de Simon Cinema.

Quem quiser implicar com Varda par Agnès poderá ser picuinhas e descobrir aqui e ali marcas de adenda ou de nota de rodapé. É legítimo, sim, mas quem entrar de alma e coração tem outras oferendas para receber, como toda a torrencial gratificação artesanal no próprio esquema de viagem pelas imagens. Caderno de notas audiovisual? Sem problemas! A única eventual limitação cinematográfica é provavelmente a sensação de que raramente Agnés questiona Varda. Nesse detalhe, lembramo-nos que Varda questionava muito Agnés em As Praias de Agnés. De facto, imaginamos o que poderíamos encontrar aqui se a cadência das imagens de arquivo tivesse uma pujança bem mais interpelativa...

No geral, é um filme sem receios do seu dispositivo de masterclasse com ilustrações, feito para ficarmos a gostar mais de Agnès Varda. Agora, depois da sua morte, será sempre um manual lindíssimo para consultarmos cada vez que quisermos reencontrar a sua arte visual. Touché!

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt