"A UE tem de ser firme com a China, mas evitar o risco de confronto"
Veio em Lisboa para a Web Summit. O que é que a França quis mostrar este ano?
Veio mostrar que está muito mobilizada no que se refere às inovações, sobretudo às startups. Isto no quadro do plano 2030 apresentado pelo presidente Emmanuel Macron. Viemos mostrar a nossa vontade de acelerar ainda mais nas startups, na inovação, na investigação. Não só para recuperarmos o atraso que podemos ter em alguns sectores, como para permanecer na vanguarda noutros, apoiando tecnologias de rutura. É uma estratégia que temos em França, mas que se insere bem na estratégia europeia de autonomia estratégica.
A aeronáutica é o primeiro sector de exportação da França, seguido do luxo. Mas quando pensamos Made in France pensamos em alta costura, champanhe, perfumes, etc. A aposta nestes sectores tradicionais é compatível com a aposta nas novas tecnologias?
Sim, são compatíveis. A ideia é sempre apoiarmo-nos nos nossos pontos fortes. Mesmo se vimos agora, com a crise da covid, que alguns dos nossos pontos fortes - como a aeronáutica - foram fortemente afetado. Tal como o turismo. Mas também é importante darmos a conhecer os nossos pontos fortes noutros sectores de atividade. Estou a pensar nas novas tecnologias, na saúde, no agro-alimentar - não simplesmente os vinhos espirituosos, onde já somos reconhecidos no mundo inteiro. Temos de os dar a conhecer ao grande público empresarial. Esta é uma das razões pelas quais estamos a trabalhar numa campanha de comunicação B2B. Portanto, as coisas são complementares. A França é forte nos sectores tradicionais, mas também é cada vez mais reconhecida em sectores como as novas tecnologias.
França e Portugal têm uma relação forte e antiga em muitos sectores. Como é que esta tem evoluído?
Evolui bem. França é o segundo cliente de Portugal e o vosso terceiro fornecedor. Há uma proximidade e fortes laços económicos. Durante a crise percebemos que esta proximidade com alguns parceiros europeus, como Portugal, era um elemento da resiliência da economia francesa. Portanto, é importante pensar nas grandes exportações - estive na África Oriental na semana passada - mas é também importante trabalhar ainda mais e melhor com os nossos principais parceiros europeus. Essa é também uma das razões da minha vinda a Lisboa. Vou encontrar-me com a equipa France Business, com todos os que estão mobilizados aqui em Portugal para desenvolver a nossa parceria. Tanto o aumento das trocas comerciais, como a construção de parcerias entre empresas francesas e portuguesas. Para desenvolver negócios locais como para irmos juntos ao mercado internacional.
A pandemia veio afetar tudo e também a economia. Como é que a política comercial da UE pode ajudar à recuperação económica - em França, em Portugal e toda a União?
A Europa decidiu construir uma autonomia estratégica. Isso passa pela política industrial e pela política comercial. A política industrial com o reforço da resiliência das cadeias de valor e abastecimento, a relocalização de parte destas e a diversificação dos nossos fornecedores, a criação de stocks estratégicos de produtos estratégicos. Estou a pensar, por exemplo, nos semicondutores, que são hoje um elemento de fragilidade muito forte da Europa em relação aos concorrentes, sobretudo asiáticos e americanos. Ao mesmo tempo precisamos de uma política comercial que permita lutar contra práticas desleais, de restrição das exportações, lutar contra tudo o que vem perturbar as cadeias de abastecimento da Europa. Estamos a trabalhar na revisão da política comercial europeia, que foi muito discutida na presidência portuguesa e que visa abrir os mercados dos nossos parceiros extra-europeus. Com uma série de ferramentas que permitem forçar os nossos parceiros a respeitar os compromissos que assumiram nos acordos de comércio livre - abertura dos seus mercados, luta contra as práticas tarifárias que travam a entrada dos nossos produtos nos seus mercados, exigência de reciprocidade ou garantir que em determinadas zonas somos muito mais ofensivos. Estou a pensar por exemplo em África. Portugal e França partilham a ambição de aumentar as trocas e parcerias económicas com África enquanto renovamos a nossa relação com o continente. Em segundo lugar temos de defender as nossas empresas de práticas desleais ou coercivas - estou a no mecanismo anti-subvenções estrangeiras - para podermos lutar contra a aquisição de empresas europeias por empresas que beneficiem de subvenções dos seus Estados. E, no caso das práticas coercivas, garantir que temos um mecanismo de retaliação quando alguns países usam meios para nos pressionar, económica e politicamente. Temos portanto este elemento que é o de garantir que a nossa política comercial seja menos ingénua. Em terceiro lugar temos de garantir que esta política comercial europeia seja mais sustentável. Temos de dar mais peso às preocupações de desenvolvimento sustentável, seja ambientais, direitos sociais ou direitos humanos. Estou a pensar num mecanismo de ajustamento carbono-fronteiriço, para lutar contra as fugas de carbono ou no instrumento jurídico de luta contra a desflorestação importada, para travarmos a chegada de produtos vindos de países onde contribuíram para a desflorestação. França criou uma legislação nesse sentido e esperamos que possa fazer-se o mesmo a nível europeu, para que as empresas invistam mais na vigilância das suas cadeias de valores, de forma a lutar contra o trabalho forçado e garantir que estas respeitam as convenções internacionais em termos de direitos sociais e do trabalho. Um dos elementos muito importantes para nós nesta abertura dos mercados é o papel de Denis Redonnet, o procurador comercial europeu, que a França desejava e que foi criado pela Comissão, tendo um papel -chave para garantir que os compromissos dos nossos parceiros comerciais são respeitados.
Falava de diversificar mercados - e falou de África, que é uma prioridade para França e para Portugal -, mas entretanto o acordo com o Mercosur continua à espera...
Para nós a revisão da política comercial passa por garantir que a Europa continua um continente aberto às trocas e ao seu crescimento, mas não a qualquer preço. Não às custas do ambiente, nem do desrespeito pelos direitos humanos e sociais. Por isso, temos um potencial de desenvolvimento das trocas com o Mercosur, mas não podemos hoje assinar um novo acordo de comércio livre enquanto, no que se refere especificamente ao ambiente, não tivermos garantias que há uma política de luta contra a desflorestação, de respeito do Acordo de Paris e ainda garantir que os produtos respeitam as normas sanitárias da Europa. É este trabalho que é preciso fazer. A França fez propostas à Comissão para definir estas garantias, quantificá-las, torná-las operacionais, definindo como é que se pode monitorizar e vigiar a sua aplicação. Seja do lado do Mercosur ou do lado europeu.
A presidência francesa do Conselho da União Europeia arranca no dia 1 de janeiro. Quais as prioridades? Haverá uma continuidade com a troika Alemanha, Portugal, Eslovénia?
Trabalhamos na questão da autonomia estratégia europeia, claro. E queria aqui destacar o papel do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, que na presidência portuguesa foi um motor na questão da reciprocidade dos mercados públicos e trabalhou para haver um acordo no Conselho. Isso é muito importante. Quanto à França, o presidente Macron terá a oportunidade de traçar as prioridades, mas vamos trabalhar para que o crescimento e a retoma sejam o mais sólidos e inclusivos possível, do ponto de vista social e ambiental. Para que possamos continuar a afirmar a nossa soberania europeia em várias áreas. Na defesa, mas também nas questões comerciais. E vamos trabalhar para que haja um maior sentimento de pertença à UE, em termos de língua, de juventude, de cultura - enquanto antigo ministro da Cultura, estou muito empenhado nisto - em termos de reforço das questões do Estado de Direito e dos valores europeus. Estes são os três grandes pilares nas prioridades da França. Na parte comercial, como já disse, temos de ter uma política ambiciosa de abertura da Europa, mas não a qualquer preço. Temos de reforçar a assertividade.
Fala-se muito em guerra comercial entre Estados Unidos e China. Como é que a UE se deve posicionar neste conflito?
Em primeiro lugar, a UE deve dar-se ao respeito. É a primeira condição para construir parcerias e trocas duradouras com estes grandes parceiros, estes Estados-continente que estão cada vez mais decididos a afirmar o seu poderio, a defender os seus interesses, de uma forma bastante unilateral. Por isso é preciso afirmarmos o nosso poderio, a nossa soberania. É esse trabalho que é feito na autonomia estratégia. Ao mesmo tempo, temos de estar num espírito de diálogo e relações construtivas. É o caso hoje com os EUA. Mas também é preciso sermos firmes em relação aos nossos valores. Nós europeus temos de ter orgulho nos valores que defendemos e devem alimentar as trocas com os nossos parceiros comerciais. No que se refere aos EUA, depois do período Trump, abre-se uma nova etapa. Foram dados sinais positivos, por exemplo o levantamento do veto à nomeação da nova diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, o regresso dos EUA ao Acordo de Paris, que se tenham sentado à mesa das negociações para criar um imposto mínimo sobre os grandes grupos internacionais. Mas vemos que a afirmação do nosso poderio e da nossa soberania é um elemento-chave para avançar na desescalada da guerra comercial com os EUA. Vimos isso no contencioso entre a Boeing e a Airbus. Foi porque a Europa afirmou que tinha de ser um parceiro respeitado pelos EUA, ao colocar tarifas aduaneiras sobre produtos agro-alimentares e aeronáuticos americanos , que os EUA, antes mesmo da mudança de Administração, voltaram à mesa das negociações. Depois chegou a Administração Biden e esta moratória de cinco anos. É fundamental porque vai permitir baixar as tarifas aduaneiras tanto para os produtos aeronáuticos como para os agro-alimentares em causa. O mesmo se pode dizer do acordo com os EUA sobre o aço e o alumínio - um dossier que era muito problemático para nós. Fomos muito firmes neste assunto: aceitámos adiar até final do ano certas medidas de retaliação, mas sublinhámos que não iríamos ceder na sua aplicação, uma vez que consideramos ilegítimas e ilegais as medidas tomadas pelos EUA em relação ao aço europeu. Mas restam algumas questões por resolver, vimos o que aconteceu com os submarinos.
No caso dos submarinos [em que a Austrália desistiu de uma encomenda de 12 submarinos franceses e optou por um vasto acordo militar com os EUA], a França não escondeu a sua irritação...
O que aconteceu [depois do anúncio do pacto AUKUS, que junta Austrália, Reino Unido e EUA] foi inaceitável. Fomos muito firmes, chamámos o nosso embaixador nos EUA mas no entanto o encontro entre os presidentes [Macron e Biden] correu bem, retomámos as condições para o diálogo. Mas como disse o presidente Macron, "não bastam declarações de amor, são necessárias provas de amor". Nas próximas semanas e meses vamos ficar atentos para que as intenções se traduzam em factos.
Falámos dos EUA em que há tensões mas há diálogo, com a China a relação é diferente?
É diferente porque temos uma relação política diferente com a China. Esta é ao mesmo tempo um parceiro quando se trata de assuntos multilaterais - vemos agora com a COP26 a importância de envolver os chineses nas metas de redução dos gases com efeito de estufa - e um concorrente, por vezes desleal, por isso é preciso ter uma política comercial europeia mais firme e menos ingénua. É também um rival sistémico, porque não temos o mesmo sistema político e estamos muito mobilizados no que se refere ao respeito dos direitos humanos, o que afeta as decisões europeias quando se fala do Xinjiang, por exemplo. Estamos muito atentos para não chegarmos a uma situação de confronto bloco a bloco. Temos de ser exigentes com a China, mas sem nos colocarmos numa situação de confronto deste tipo. Temos de evitar um risco de escalada que nos parece perigoso.
A relação entre França e o Reino Unido tem estado tensa por causa das pescas. Como é que se sai desta situação?
É simples, é preciso respeitar a palavra dada e que os acordos que acabam de ser assinados, depois de serem negociados durante anos, sejam respeitados. Estamos abertos a que as modalidades de aplicação prática sejam negociadas para serem as mais simples possível. Queremos criar condições para o maior número de trocas comerciais com o Reino Unido, mas não a qualquer custo. Nem ao custo de um acordo que acaba de ser assinado, nem ao custo de uma concorrência desleal. Sim ao pragmatismo na aplicação dos acordos, não à revisão desses acordos.