A tragédia de Anna Bolena  vista por Donizetti no São Carlos

Estreada em 1830, <em>Anna Bolena</em> foi o primeiro grande sucesso de Gaetano Donizetti e a primeira de três óperas que dedicou a rainhas inglesas do século XVI. Regressa ao palco do São Carlos numa produção assinada pelo grande encenador britânico Graham Vick e que conta com o soprano romeno Elena Mosuc no papel titular. À estreia, hoje (20.00), seguem mais quatro récitas
Publicado a
Atualizado a

É um dos papéis soberanos de todo o repertório italiano da primeira metade do século XIX, aquele que vamos poder admirar no palco do São Carlos a partir de hoje. Talvez por isso, raros são os sopranos com a voz adequada para o enfrentar (são chamados soprani assoluti e Callas, claro, foi um deles). Aos 53 anos, a romena Elena Mosuc sentiu ser chegado o momento: "Sim, eu cantara-o há uns anos já em Viena, com o maestro Bertrand de Billy, mas em versão de concerto e sentira que a minha voz ainda não estava pronta para acometer este papel. Agora, com a evolução vocal que tive desde então e a maturação do timbre, penso ter os pressupostos que são indispensáveis para a Anna Bolena", um papel que reputa como "um dos mais exigentes a todos os níveis da ópera italiana, pois requer elegância e espessura, tem grande amplitude de tessitura com muitos saltos entre registos, pede muita coloratura e ainda por cima é um papel extensíssimo!"

Anna Bolena, uma tragedia lirica sobre libreto de Felice Romani, estreou em Milão no Natal de 1830, com Giuditta Pasta, uma das mais célebres cantoras de todos os tempos, no papel principal. Foi um êxito enorme, que projetou o nome de Donizetti mundo fora. Chegou ao São Carlos apenas três anos volvidos (fevereiro de 1834). Agora, regressa com uma encenação de Graham Vick originalmente pensada para a Arena de Verona, em 2007: "Em Verona, foi Mariella Devia que o cantou e agora eu e Graham tivemos previamente que adaptar a composição da personagem às minhas características e personalidade - digamos que, com as minhas sugestões, ficou agora um pouco mais ativo, enérgico. É gratificante lidar com ele, pois ele trabalha sempre muito rente à partitura", diz Elena, que só trabalhara uma vez com Vick. "Foi na sua já famosa encenação da Lucia di Lammermoor [Donizetti],em Turim, em 2011". Do maestro Giampaolo Bisanti, diz que "ele conhece cada pormenor da partitura e sabe como cada nota deve soar, por isso imagine tudo quanto tenho de pensar e ainda assim manter uma emissão natural!" Elena conheceu Bisanti "há precisamente um ano: fiz com ele uma Lucia na Ópera de Mascate [Omã] em janeiro de 2016, numa produção do Teatro Carlo Felice de Génova."

Em relação ao seu personagem, Elena di-la "inegavelmente uma mulher determinada e ambiciosa, um caráter forte. Ela fez tudo para ser rainha e conseguiu-o. Agora, ao ver que Henrique se desinteressou dela, torna-se um pouco melancólica e recorda o amor mútuo que viveu com Lord Percy, depois rejeitado em favor do rei. Mas é precisamente esta situação que lhe dará uma dignidade que talvez não adivinhasse dentro de si para saber afrontar com elevação as provações a que irá ser sujeita, culminando na sua condenação à morte no cepo, para o qual avança com o porte de uma verdadeira rainha".

Ilustração disso é a sua relação com Giovanna (Jane) Seymour: "Giovanna é a sua amiga mais chegada e Anna nota desde bem cedo que o rei anda atrás dela. Depois, claro que fica chocada quando Giovanna lhe confessa ser a nova paixão do rei, mas a sua raiva inicial dá lugar a um perdão que julgo ser sincero, pois ela percebe que a culpa reside apenas no rei seu marido. Ela inocenta Giovanna, já que percebe que ela não poderia rejeitar o rei. Naquele tempo, para uma mulher, isso era algo de impensável!"

À estreia na Anna Bolena, Elena junta a estreia no Teatro São Carlos. Lisboa, contudo, já a "viu" várias vezes: "Sim, sobretudo desde que conheci o cantor Gonçalo Salgueiro [foi em 2013 e têm juntos o espetáculo Operfado], já vim várias vezes cá, e fui também a Fátima". De Lisboa, a cantora sairá para as Canárias, para nova Lucia, um dos papéis que conhece melhor: "Sim, esse e Gilda [Rigoletto] quase me apetece anunciar que não os desejo cantar mais! [risos] Até porque a minha voz já evoluiu noutra direção que não a que esses papéis requerem propriamente..." .

Mais frisson denota quando fala de uma ida ao Japão: "em setembro, farei em Tóquio a minha primeira Desdemona [Otello, Verdi], numa versão de concerto!" Pelo meio, há outra "rainha" de Donizetti: "vou fazer em maio a Maria Stuarda [Donizetti] na Ópera de Génova,a primeira vez desde uma encenação de má memória em Berlim, em 2006". Falta-lhe portanto só a Elisabetta do Roberto Devereux para completar a trilogia: "gravei duas árias dela em CD, mas ainda não há planos para me estrear em teatro nesse papel".

Junto com a heroína de Shakespeare, as "rainhas" em Lisboa e Génova serão decerto as memórias mais marcantes do 2017 de Elena.

Anna Bolena
direção musical: Giampaolo Bisanti
encenação: Graham Vick
Elena Mosuc (Anna Bolena), Burak Bilgili (Enrico VIII), Jennifer Holloway (Giovanna Seymour),
Leonardo Cortellazzi (Lord Percy) et al., Coro do São Carlos, Orquestra Sinfónica Portuguesa
récitas hoje e dias 6, 9 e 14 (20.00) e dia 12 (16.00)
bilhetes dos 20euro aos 60euro

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt