"A situação dos direitos humanos pode pôr em risco o acordo"

O relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte explica ao DN a ligação entre esse tema e as hipóteses de uma paz sólida na região. E lança um apelo a Kim Jong-un
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Tomás Ojea Quintana é um advogado argentino, especialista em direitos humanos. Em Buenos Aires, onde vive, foi um dos representantes da ONG "Avós da Praça de Maio", que tenta ainda hoje reconstituir a história de famílias destruídas pela ditadura militar de Jorge Videla, nos anos 70. Na ONU, foi diretor executivo do Programa para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos na Bolívia, e o relator especial para Myanmar, entre 2008 e 2014.

Desde que foi nomeado para as suas atuais funções, em 2016, com um mandato de seis anos, Tomás Ojea tem repetido que as negociações militares não devem ocultar a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte. "Um acordo de desnuclearização permanecerá frágil se colocar em segundo plano os direitos e necessidades da população da Coreia do Norte. A paz e a segurança não podem ser alcançadas apenas sob a forma de acordos intergovernamentais, mas também, e talvez mais sobretudo, sob a forma de políticas domésticas que garantam o pleno gozo dos direitos humanos sem discriminação. "

Como avalia esta cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un?

Devo dizer que me pareceu muito positivo este encontro. Sobretudo pelo que significa face a tudo o que aconteceu no ano passado - marcado por uma linguagem agressiva, por demonstrações de hostilidade - e isso não levaria a nada de bom. Mas a minha responsabilidade enquanto relator especial da ONU para a questão dos direitos humanos na Coreia do Norte é a de garantir um progresso na situação dos direitos humanos. E infelizmente não há nenhuma referência aos direitos humanos no texto subscrito por Donald Trump e Kim Jong-un.

Antes desta cimeira disse que a situação dos direitos humanos e a paz estão interligadas. Acredita que isso foi tido em conta?

Espero que seja considerado nas próximas reuniões. Na sua conferência de imprensa, Donald Trump revelou que falara nos encontros a sós com Kim Jong-un de assuntos como a importância da devolução de corpos de soldados americanos, ou de prisioneiros japoneses. Foi algo que os dois líderes abordaram, mas não está refletido no documento conjunto. Eu reafirmo essa relação estreita entre a situação dos direitos humanos e a possibilidade de uma paz sólida. Se não forem garantidos os direitos humanos é mais provável haver violência.

Considera que o acordo de desnuclearização se torna mais frágil sem um progresso nas condições de vida dos cidadãos da Coreia do Norte?

No momento que vivemos agora nas negociações com a Coreia do Norte, as partes envolvidas, os EUA e a Coreia do Sul, não consideram que a ausência fragilize a desnuclearização. Eu temo que isso crie condições para que, em algum momento, a questão da ausência de uma referência aos direitos humanos ponha em risco o acordo.

Quando iniciou o seu mandato disse que pretendia exercê-lo com independência e imparcialidade para melhorar as condições em que os norte-coreanos vivem. Sente que agora pode fazê-lo melhor?

É uma excelente pergunta. Penso que agora posso fazer uma proposta concreta às autoridades da Coreia do Norte. O meu apelo é que Kim Jong-un mostre uma abertura face à ONU. Até ao momento, o governo permaneceu fechado face às hipóteses de diálogo com as Nações Unidas. Agora que está a mostrar uma atitude positiva, face ao nuclear, poderia mostrar abertura para as questões dos direitos humanos. Isso dar-lhe-ia uma credibilidade significativa.

Recebeu algum sinal de que a Coreia do Norte pode estar recetiva a uma visita sua? Seria a primeira vez que visitaria o território...

De momento, lamentavelmente, não tenho nenhum sinal dessa recetividade. Não houve nada a esse respeito. Também pedi aos outros Estados que participam nas atuais negociações com a Coreia do Norte que intercedessem para que pudesse existir, em paralelo, um diálogo comigo, e com a ONU.

Disse que gostaria de acompanhar a evolução das negociações sobre o desarmamento. Conseguiu?

Fui categórico a expressar a importância deste processo de desnuclearização. Também porque sempre considerei que a libertação de recursos económicos que agora são destinados a gastos militares poderia ser muito importante se esses recursos fossem postos ao serviço da população. A situação fora da capital da Coreia do Norte é dramática: há um escasso acesso a alimentação adequada, ou acesso a serviços de saúde. Esse é um vazio importante que compete ao governo da Coreia do Norte resolver. Mas também sempre me pronunciei contra os malefícios de sistema de sanções que afeta a economia do país no seu todo e, por isso, afeta a população.

Acredita que a sua mensagem de que o debate sobre os direitos humanos fortalece as negociações militares foi tida em conta pela administração Trump?

Creio que é muito importante a reação dos meios de comunicação. Essa preocupação esteve sempre nas perguntas feitas a Donald Trump nas conferências de imprensa. Os jornalistas não deixaram cair o assunto e perguntaram sempre se a situação dos direitos humanos tinha sido abordada nos encontros entre os dois líderes. É certo que não é fácil apresentar o assunto. Muitos diplomatas pensam que levantar o tema podia fazer perigar o processo de desnuclearização. Mas eu acredito que esse não é um dilema. Haver uma abertura da Coreia do Norte para um diálogo sobre as condições de vida da população pode acrescentar credibilidade à posição do país. Separar os assuntos é que não é eficaz.

Uma abordagem possível seria a de começar por temas menos polémicos, como a reunião de famílias separadas desde a guerra, ou uma revisão do impacto das sanções económicas aplicadas à Coreia do Norte?

É uma estratégia interessante como primeiro passo. Mas tocar apenas nesses assuntos não resolve os problemas concretos da vida dos cidadãos na Coreia do Norte. E não modifica a atitude do país face à ONU. Gostaria de ouvir a Coreia do Norte a dizer que está disponível para um diálogo comigo e com a ONU. Que estaria pronta para começar um diálogo de forma aberta.

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