A sexualidade enredada na tecnologia

O ano cinematográfico de 2021 começa com um acontecimento muito especial: a reposição, em cópia restaurada, de <em>Crash</em>, o filme de David Cronenberg que, em 1996, recebeu o Prémio Especial do Júri no Festival de Cannes.
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Perante a reposição de Crash, o filme de David Cronenberg que, em 1996, arrebatou o Prémio Especial do Júri no Festival de Cannes, será oportuno recordar um princípio muito básico. A saber: não há cinefilia sem memória, isto é, sem o culto exigente da memória.

A afirmação envolve valores de natureza cultural, mas será sempre precipitado (aliás, a meu ver, errado) supor que, com ela, se está a defender um qualquer ideal abstrato para a vida dos filmes. Nada disso: todas as opções culturais envolvem e favorecem fatores comerciais. Fazer cultura é pensar o comércio. Fazer comércio é sempre uma atividade cultural, sobretudo quando se tenta escamotear isso através da evocação de generalidades demagógicas como o "gosto do público".

Saudemos o gesto - e, no presente contexto, o risco - da distribuidora Films4You, lançando no mercado o prodigioso filme de Cronenberg, para mais numa exemplar cópia restaurada, em definição 4K. Várias distribuidoras (e também exibidores) independentes têm-se distinguido nesse campo. Sem pretender ser exaustivo, evoco, por exemplo, ao longo de 2020, algumas propostas de revisitação de clássicos pela Alambique, a Leopardo Filmes ou a Midas Filmes. Trata-se de reconhecer que há públicos disponíveis que existem para lá dos efeitos, efémeros e arbitrários, das campanhas com meios para ocupar os ecrãs de televisão e os painéis das nossas ruas.

No site da Films4You, o reaparecimento de Crash é anunciado através de uma frase deliciosa: "Crash de David Cronenberg volta à tela do cinema em 4K." Porquê deliciosa? Porque a designação do ecrã de cinema como "tela" não só caiu em desuso, como passou a arrastar uma conotação algo anacrónica, rejeitada pelo universo de ecrãs (computador, telemóvel, tablet, etc.) em que nos movemos e, garantem as promoções, comunicamos uns com os outros...

Crash é mesmo um filme de tela. Há nele a respiração inconfundível de uma visão que sabe que o ecrã não é uma reprodução automática do mundo à nossa volta. A associação à tela do pintor é muito sugestiva, até porque as imagens, assombradas pela tristeza feérica de um azul metalizado, são assinadas pelo genial Peter Suschitzky, colaborador habitual de Cronenberg.

Seja como for, importa não cair no erro de pensar que a composição das imagens cinematográficas necessita de "imitar" a pintura para adquirir pertinência ou grandeza. O que está em jogo é um paradoxo que circula por toda a história do cinema, de Carl Th. Dreyer a David Lynch, passando por Andrei Tarkovsky ou Tim Burton: os elementos visíveis que os filmes colocam em cena comunicam com a invisibilidade dos fantasmas.

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Os protagonistas de Crash são homens e mulheres cujo fascínio pelos acidentes de automóveis se confunde, ponto por ponto, com a procura de algum êxtase sexual. O que, entenda-se, leva Cronenberg a conceber espantosas imagens (será preciso recordar que este é mesmo um filme para adultos?...) cuja perturbação, mais do que gráfica, é de natureza existencial: que sabemos, que julgamos saber, que queremos saber da mecânica da nossa sexualidade?

Rezam as crónicas que, em 1996, tais características dividiram o júri de Cannes. O presidente, Francis Ford Coppola, foi o que mais resistiu à atribuição de qualquer distinção a Crash, a ponto de o Prémio Especial ter sido a única alternativa possível, uma vez que pode ser implementada pelos membros do júri sem a concordância do presidente - recentemente, em entrevista ao site IndieWire (13 agosto 2020), a propósito da nova cópia 4K, o próprio Cronenberg relembrou esses factos.

Crash nasce de outra componente ancestral: a relação com a literatura. Nada de estranho no universo "cronenberguiano". Afinal de contas, antes e depois de Crash, ele conseguiu consumar as "impossíveis" tarefas de adaptar The Naked Lunch/O Festim Nu (1991) e Cosmopolis (2012), inspirando-se, respetivamente, em William S. Burroughs e Don DeLillo.

No caso de Crash, a adaptação do romance homónimo de J. G. Ballard (disponível em tradução portuguesa de Marta Mendonça, ed. Elsinore) é tanto mais admirável quanto a encenação cinematográfica envolve um trabalho com os atores que resiste a todos os clichés dramáticos de representação dos desejos humanos. James Spader, Holly Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette têm a seu cargo a tarefa de representar ações, gestos e pensamentos que nascem do cruzamento perverso de desejos e tecnologia - como se, literalmente, o prazer sexual só fosse possível através do choque (crash) dos automóveis em delírio.

Espelhando a nossa atual relação perversa com as máquinas, o romance de Ballard possui qualquer coisa de visionário, uma vez que surgiu em 1973. São suas estas palavras do prefácio para a edição de 1995 (cito a tradução portuguesa): "Vivemos num mundo governado por todo o tipo de ficções: o mass merchandising, a publicidade, a política conduzida como subproduto da publicidade e a aniquilação de qualquer reação espontânea dos espectadores por parte do ecrã de televisão. Vivemos dentro de um enorme romance. É cada vez menos necessário o escritor inventar o conteúdo ficcional do seu trabalho.
A ficção já existe. A tarefa do escritor é inventar a realidade."

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