A semântica no discernimento político
A semântica, como acontece em todos os domínios da política, enriquece a perplexidade com que se debatem a análise e previsão sobre o futuro da União Europeia. No que respeita à previsão há que ter presente a dificuldade de surpreender o trajeto da ordem social espontânea, que torna incerta a pilotagem da ordem social conhecida, fazendo do modelo de steering um método exigente da existência de um conceito estratégico assumido a cargo de uma autoridade identificada. Por agora, uma linha que podemos chamar de constitucionalização da Europa oferece um desenho do conceito estratégico com o projeto chamado Tratado Constitucional da União Europeia, apresentado em 20 de junho de 2003, em Salónica, por Valery Giscard d"Estaing, aos Chefes de Estado e de Governo.
Enquanto a conjuntura internacional vai revelando sinais de incerteza quanto ao trajeto do processo e à definição do quadro de ameaças que exigem planos de contingência à falta de uma planificação ordenada, a designada Convenção Europeia produziu o referido texto elaborado pelo seu Praesidium, por alguns setores mais uma vez festejado como o anúncio de uma potência mundial, à qual apenas faltam os instrumentos do poder. Não se tratou de "lecionar sobre navegação, enquanto o barco se afunda", porque as dificuldades europeias estiveram presentes e foram sempre avaliadas como suscetíveis de ser ultrapassadas pelas vontades cooperantes dos Estados. Grande parte dos membros do grupo de trabalho tem vasta experiência de governo, de intervenção parlamentar, e de negociações internacionais, pelo que não devia estar direcionado no sentido de elaborar uma cortina paliativa que mantivesse discreto o clamor das inquietações europeias e mundiais. Talvez estas últimas fossem as que mais frequentemente aparecem invocadas no diálogo organizado com a opinião pública, ou destinado a organizar a opinião pública se esta for uma forma mais rigorosa de caraterizar a corrente de anúncios, comunicados, e previsões que alimentaram a comunicação social.
As dificuldades económicas, e as perturbações sociais tinham sempre, em cada país, a irrecusável presença que os factos da vida instalam na angústia quotidiana; mas na temática dos convencionais, como desejaram ser conhecidos, a questão do poder europeu, a articulação entre o europeísmo e o americanismo, o aparelho da segurança e defesa coletiva, a definição de uma capacidade de presença efetiva na solução dos conflitos mundiais, mostram reconhecível tendência para ocupar uma posição dianteira. É evidente que a questão do eixo do mal tende para ser um fator de perturbação da tentativa de organizar a vida internacional com previsibilidade, quando a carência de lideranças ocidentais se vê ainda acentuada pelas dúvidas sobre a credibilidade das provas que publicamente levaram à dispensa da legitimação pela ONU da segunda grande intervenção militar no Iraque.
Tudo aponta pois para que se reconheça premente a necessidade de a Europa não ser apenas um espaço onde tombam os efeitos colaterais dos unilateralismos, e que a salvaguarda da solidariedade do espaço atlântico exige sentido de urgência e de comprometimento, apoiado em capacidades logísticas e vontade esclarecida dos seus povos, mas é problemático que esta última tenha sido a referência diretora mais premente do Praesidium. E, todavia, o próprio desenvolvimento da frente jurídica que está a ser sustentado no que respeita às fronteiras da União, a partir do ordenamento existente, tem parecido secundarizado por aquela aguda situação internacional. Afigura-se difícil, vista a relação de forças internas, que a Europa venha a ter em futuro próximo uma chamada Constituição, e são sérias a exigências que inspiram a evolução condicionada pelos interesses dominantes. Parece contudo existirem razões válidas para meditar sobre se o processo convencional não insistiu em erros que sempre afetaram negativamente o processo de construção da unidade europeia. Neste caso, a começar pela semântica que alguns entenderam destinada a lembrar os convencionais da fundação dos EUA, mas que a sede e proeminência na direção do Praesidium fizeram aproximar da imagem dos grandes feitos da revolução francesa.
O apelo à grandeza não tem nada de reprovável, mas nesta hipótese parece excessivo para um grupo de trabalho que definitivamente deveria servir o propósito de romper com o método da política furtiva que mais vezes surpreendeu os eleitorados europeus do que defendeu a sua adesão esclarecida. Quando o magro preâmbulo proposto pelo Praesidium desde já inscreve a declaração, a ser aprovada, de que os Estados e povos se proclamam "gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado a presente Constituição em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa", aquilo que imaginam é que estão a oferecer, com nome suposto, uma Carta Constitucional. E isto é o que não convém à unidade europeia, porque apenas cabe na lógica de um Diretório. Atingiu-se um ponto crítico em que só a vontade dos parlamentos e eleitorados nacionais é legitimadora.