A segunda vida de uma pintura-filme
Uma tela com 2,5 metros de altura por quase 400 de comprimento, eis o Grande Panorama de Uma Viagem de Baleeiro à Volta do Mundo. Lá está o barco à saída de New Bedford, nos Estados Unidos, depois o grande oceano, os Açores (as ilhas do Faial, Pico, São Jorge e Graciosa), Cabo Verde (regista a espetacular erupção do Fogo, em 1847), Brasil, a ilha de Robin Crusoe no Pacífico Sul, até se avista o navio de Melville na baía de Taipé. Uma longa pintura que conta a história da baleação da Nova Inglaterra. Imaginemo-la estendida nas paredes interiores de um edifício circular, girando devagar, deslumbrando o público desejoso de conhecer outras paragens, instalado no centro da sala. Ouve-se música e um narrador conta a magnífica aventura, que o público acompanha ao longo de duas horas, detalhe a detalhe. Uma emoção estamos em 1848.
O primeiro espetáculo aconteceu nesse ano (três anos antes da edição de Moby Dick), em New Bedford e durou duas horas. Tantas histórias contava o Purrington-Russell Panorama. Foi um sucesso. Aquela tela de levava às audiências um espetáculo grandioso do exótico e do desconhecido. Um dos autores, Benjamin Russell, era um filho da terra. Andou embarcado 42 meses (entre 1841 e 1844) num navio baleeiro, para poder colocar no desenho todos os pormenores.
A pintura foi exibida pela última vez na sua totalidade já no século XX, em 1969 numa loja de móveis vazia em Pope Island, entre New Bedford e Fairhaven, conta-nos Michael Dyer, curador de História Marítima do Museu da Baleia de New Bedford. A tela móvel foi sofrendo o natural desgaste das viagens (a maior parte, de comboio) pelos EUA e de 120 anos a enrolar e desenrolar. O museu cuidou do seu restauro, num processo que demorou 16 anos e deverá culminar com uma exposição móvel em 2018. O restauro e a digitalização integral da obra custou 340 mil euros, verba proveniente de doadores, fundações privadas e fundos governamentais.
"Três pessoas trabalharam na conservação do Panorama. Havia pessoal de apoio extra, mas foram três as pessoas fizeram a maior parte do trabalho: dois conservadores de têxteis e eu. Estabilizei a pintura antes dos conservadores consertarem o pano. O trabalho físico, real, levou mais de um ano, mas o trabalho de planeamento e preparação começou em 2001", conta ao DN Jordan Berson, diretor de coleções do museu. "O trabalho foi feito numa grande mesa, feita de propósito para este trabalho. Pulverizei a superfície pintada com uma solução gelatinosa, usada em conservação. Os conservadores têxteis preencheram as falhas com tecido similar, que foram tingidos para se aproximar das cores da pintura e misturarem-se visualmente na tela", explica.
Maior quadro do mundo
O Panorama está no museu desde 1918. Foi doado por Benjamin Cummings, que o descobriu entre bolas de naftalina num sótão da cidade. Desde então, é um dos destaques da exposição, até porque "provavelmente" é a maior pintura original do mundo, refere o museu.
Benjamin Russell (1804-1885) não é o único autor do quadro, embora se acredite que tenha sido o principal. Com ele trabalhou Caleb Purrington (1812-1876), e por isso também se chama à tela Purrington-Russell Panorama. "Não existe nenhuma evidência direta que mostre o que cada um dos artistas colocou na pintura. Russell terá sido o responsável por todo o conteúdo, enquanto Purrington provavelmente terá colorido tudo, mas isso são meras hipóteses", aponta o blog do museu.
Certo é que a pintura não está assinada, confirma Jordan Berson. Certo também é que Russell não era um estreante na pintura, que aperfeiçoou na jornada náutica. Em 2014 o Museu da Baleia de New Bedford apresentou uma exposição com uma centena de pinturas e uma dúzia de litografias do autor, a maioria posteriores a 1848.
Tudo indica que Russell embarcou no baleeiro Kutusoff , deixando mulher e três filhos em terra, com o objetivo bem definido de fazer um panorama. Filho de uma das famílias baleeiras mais antigas de New Bedford, beneficiou dos auspícios da atividade económica que alimentava aquela cidade marinheira dos EUA. Russell foi presidente do Banco Marítimo de New Bedford e especulou no mercado imobiliário, mas a crise bancária da década de 1830 atirou-o para a bancarrota. E, depois, para o mar.
Nessa viagem de três anos e meio, navegou pelo Atlântico, pelo Pacífico e Índico, nas escalas da baleação de New Bedford. Um dos pontos de passagem, devidamente representado na tela, são os Açores. Os americanos recrutavam pessoal nas ilhas para integrar as tripulações que se dedicavam à caça da baleia (New Bedford foi um dos principais destinos de emigração açoriana, mantendo uma forte comunidade portuguesa). As ilhas do Faial e do Pico, mas também São Jorge e Graciosa surgem representadas na enorme pintura. A zona onde estão representadas está bem conservada, assegura Berson.
Para além da pintura, o museu não tem mais material deste Panorama. Textos, material de apoio ou cartazes, nada resta confirma Michael Dyer. Também não se sabe quantas pessoas eram necessárias para pôr o espetáculo a funcionar. "Pelo que os registos mostram, era o próprio Benjamin Russell o narrador da maior parte dos espetáculos e acompanhava a pintura de local em local", refere o curador.
Os panoramas protagonizaram um modo de entretenimento que floresce no final do século XVIII na Europa e chega depois aos Estados Unidos. Foram popularizados nas Feiras Mundiais. O público era colocado no centro das enormes pinturas, que lhes mostravam destinos distantes e exóticos, criando uma sensação de estar dentro da ação. Uma experiência imersiva no século XIX, a sugerir um primo (muito) afastado do cinema 3D. "Sim, os panoramas foram precursores do cinema, que foi ele mesmo precursor das experiências tridimensionais. O género evoluiu", admite Dyer.
A preparar nova digressão?
Nos Estados Unidos havia outros panoramas móveis (assim como na Europa). Esta obra é contemporânea de pelo menos quatro panoramas a relatar expedições ao Ártico. Hoje em dia resistem poucos no mundo, em particular os panoramas móveis, naturalmente mais degradados. Restaurado, o Grande Panorama de Uma Viagem de Baleeiro à Volta do Mundo deverá ser exposto da forma original no verão de 2018. O museu ainda procura o espaço onde vão recriar o espetáculo original do século XIX, com sessões para o público assistir ao vivo à história da baleação contada em aguarela sobre tela de algodão. "O Panorama pode ser exibido na sua totalidade num espaço de 16 mil metros quadrados. O sistema de exibição ainda está a ser desenvolvido. É uma peça complicada para exibir, mas vamos descobrir uma solução. Pretendemos que a obra viaje, como costumava fazer", revela Jordan Berson. A pintura-filme procura espaços para se mostrar em New Bedford mas poderá ir mais longe e ir a cidades como Boston, Bufalo, Nova Iorque e St. Louis, onde esteve há mais de um século, para gáudio da população.