A salto
Um dia desapareceu. Não fez avisos, não deixou carta, nenhuma explicação. Simplesmente deixou de aparecer na loja de tecidos do velho tio que, mais por piedade, o acolhera. António atendia às vezes ao balcão e até encantava as senhoras da boa sociedade provinciana, mas quando a conversa passava para os tecidos a coisa descarrilava. António não distinguia um tweed de um algodão, uma seda de um linho fino, ou de uma chita barata. E o pior, invetivava o tio, irrepreensível no seu fato de bom corte, era que António não queria aprender. O jovem olhava-o com um olhar sonhador, dizia "sim, meu tio", e calava-se.
Um dia não apareceu. Ao fim de uns dias, a família inquietou-se. O velho percorreu com olhos alarmados as páginas de acidentes e crimes no jornal, mandou o motorista correr os hospitais em busca de algum ferido anónimo não reclamado, mas nada. António não estava em parte nenhuma. Passaram semanas, meses, anos. A família conformou-se e sepultou o mistério no silêncio.
Conheci António muito mais tarde. Apareceu um dia ao volante de um Triumph Spitfire azul descapotável, sorridente, e cheio de histórias para contar - algumas imaginadas. Mantinha o olhar sonhador, a que juntava agora um brilho de triunfo. Gostei logo dele. Sabia do mistério calado na família, vê-lo em carne e osso fascinou-me. Não se furtou a perguntas. A loja, a vida sem horizonte não lhe bastava. Sonhava com Paris, tantos partiam. Decidiu ir também, sem se despedir sequer - a família ter-se-ia oposto, não quis correr riscos. "Fui a salto e vi-me em Paris sem dinheiro, sem conhecer ninguém, dormi em vãos de escada." Calou-se um momento.
"Há momentos em que nos descobrimos capazes de coisas que nunca suporíamos. Sabes qual foi o primeiro trabalho que tive lá?" Imaginei-o a carregar baldes de cimento, vigas e tijolos, mas imaginei pouco. A resposta veio a meia voz. "Um conhecido de um tipo que encontrei por acaso desenrascou-me. Fui lavar cadáveres na morgue do hospital. E sabes que isso deu um filme?" Fiquei incrédula. Seria? Quando muitos anos depois vi Le Sault, de Christian de Chalonge, sobre a emigração portuguesa dos anos de 1960 para França, emocionei-me no escuro do cinema quando António, a personagem principal, chegado a Paris, se vê obrigado para sobreviver a aceitar a única coisa que lhe oferecem: lavar cadáveres na morgue de um hospital. O meu tio António era uma personagem - e um homem de extremos.