"A revolta do gueto teve uma influência incrível no ano seguinte, na insurreição de Varsóvia"

A embaixada da Polónia em Portugal e a Universidade Católica organizaram uma conferência em Lisboa para assinalar os 80 anos da heroica rebelião dos judeus da capital polaca contra os ocupantes nazis. O palestrante foi o diretor do Museu do Gueto de Varsóvia, Albert Stankowski, com quem o DN conversou sobre os acontecimentos de abril e maio de 1943.
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Quando penso no gueto de Varsóvia lembro-me sempre do filme O Pianista, de Roman Polanski. É possível ter uma ideia do que era a vida no gueto a partir deste filme ou é demasiado hollywoodesco?
Em primeiro lugar, o que descobri e foi para mim, que sou um judeu polaco, bastante surpreendente, foi o facto de as pessoas que vêm visitar a Polónia e Varsóvia, vindas do estrangeiro, pensarem que o gueto existia antes da guerra. Pensam que, tal como aconteceu em Veneza, talvez tenha havido uma parte da cidade onde só os judeus viveram. Não é verdade. Antes de mais, em Varsóvia, até 1939, viviam 320 mil judeus. Varsóvia tinha a segunda maior comunidade judaica do mundo. Um em cada três habitantes de Varsóvia era judeu, o que significa que se podia andar na rua e encontrar muitos judeus. Tinham negócios, tinham empresas, estavam envolvidos na cultura. Compara-se com a situação atual, em que a comunidade judaica não ultrapassa as mil pessoas, o que significa a sua enorme ausência após o Holocausto. Esta era uma sociedade polaca com todos os problemas, bons e maus, antes da guerra, tal como acontece nas famílias. Por vezes, era uma relação positiva, outras vezes era uma situação muito difícil, mas era uma sociedade, tratava-se de cidadãos polacos. Todos.

Em geral, as pessoas que não conhecem a história polaca imaginam que o gueto já existia antes da guerra, quando na verdade foi construído pelos ocupantes alemães em 1940?
Imediatamente em 1940, sim. Antes não havia o gueto de Varsóvia. Antes da guerra, lembro que havia na Polónia 3,2 milhões de judeus, 10% da sociedade polaca era judia.

Era a maior comunidade judaica?
Uma das maiores, a segunda maior do mundo. Era realmente uma comunidade judaica vibrante e enorme na Polónia. E é disto que gosto, aliás, estou a ler a história de um dos mais famosos sobreviventes polacos do Holocausto, que sobreviveu a Auschwitz, Marian Turski, que é também jornalista, e atualmente tem 97 anos, penso eu. E ele disse que o mal vem silenciosamente, passo a passo. E isto, quando pensamos no Holocausto em geral, vemos imediatamente todas estas imagens, até mesmo do filme, as valas comuns, Auschwitz, os campos de concentração, mas o Holocausto não começou assim. Em primeiro lugar, começou com a invasão alemã, a 1 de setembro de 1939, e os judeus, juntamente com os outros polacos, tentaram defender a sua pátria. A Polónia era a sua pátria e estavam 70 mil judeus no exército polaco. A sociedade civil tentou construir uma barricada, abrigos, juntos. Mas quando começou a ocupação, no final de setembro, foi quando começaram todas as regulamentações e restrições. Que tipo de restrições? A restrição que, antes de mais, dividiu a sociedade entre judeus, polacos e alemães. Três grupos e cada grupo tinha direitos diferentes, cada grupo tinha uma oportunidade diferente de vida e a ração de comida era diferente. Para os judeus, não era mais do que 200 calorias por dia. No início, a maior parte da comida era contrabandeada do mercado negro, mas também quanto tempo se pode pagar três vezes mais pela comida? Por vezes, temos algumas poupanças, e estas pessoas que têm poupanças até utilizam estas fontes, mas depois não havia qualquer rendimento. A política da comunidade judaica era partilhar a comida com esta parte mais pobre da sociedade, isto era muito comunista. No início, começaram por construir uma cozinha coletiva, por exemplo, num edifício em que viviam muitas, muitas famílias, e isso era bonito. Todos deviam partilhar o que tinham e cozinhar juntos, por exemplo. Mas o regulamento imposto pelos alemães era do género: não se pode ir ao parque, não se pode ter uma conta bancária, não se pode trabalhar como médico, por exemplo. Depois, durante a ocupação, a vida tornou-se cada vez mais difícil para os judeus. Limitação, limitação, limitação. A 16 de novembro de 1940, os judeus foram realojados de todas as outras partes de Varsóvia para o centro da cidade. E os católicos polacos que viviam nessa área, foram realojados em locais fora do gueto, e foi construído um muro de 14 quilómetros, que se tornou na maior prisão da Europa.

O muro foi construído nesse momento? Do nada?
Nesse momento começaram. Fecharam o gueto em novembro de 1940. E esse foi o momento em que quase 450 mil judeus foram concentrados em apenas três quilómetros quadrados de área. Muito, muito apertados, num quarto às vezes quatro ou cinco pessoas. E também havia condições muito duras, e o que aconteceu foi que as pessoas começaram a apanhar a doença que se chama tifo. Muitas pessoas começaram a morrer porque não havia cuidados médicos e não havia comida. Agora, lembramo-nos da recente covid e sabemos como nos proteger de uma pandemia, nomeadamente através do distanciamento social e o não poder estar na rua. Mas se olharmos para as fotografias do gueto de Varsóvia, vemos como as ruas estavam cheias de gente. As pessoas estavam como sardinhas numa pequena caixa. Era esta a situação que afetava uns e outros. E entre 1940 e 1942, até julho, antes da grande deportação, só de doença e fome morreram no gueto de Varsóvia 100 mil pessoas. Mais tarde, quando começaram a grande deportação, a 23 de julho de 1942, mandaram-nos para Treblinka, um campo de extermínio alemão, organizado de uma forma muito secreta, no meio da floresta. No início, os judeus não sabiam, os alemães disseram-lhes que iam trabalhar na Rússia ou na parte leste da Polónia, alguns para longe, mas para trabalhar, não para um campo de extermínio. E nesta situação, entre julho e setembro, foram mortas neste campo de extermínio cerca de 450 mil pessoas.

Nessa altura, por exemplo, o depois célebre diplomata polaco Jan Karski não tinha ainda conhecimento do Holocausto. Era tudo ainda completamente secreto?
Não, mas em setembro, foi nessa altura que Jan Karski veio secretamente ao gueto, trouxeram-no em cooperação com os movimentos clandestinos judeus e mostraram-lhe a situação. Ele visitou o gueto duas vezes, é possível ver as datas das visitas, e ficou horrorizado.

Depois desta visita, Karski viajou para o Ocidente e tentou alertar.
Sim, foi para Londres e depois para a América, onde falou com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt. Foi uma visita de quase uma hora e o presidente disse-lhe, quando ele contou tudo isto, "a Polónia é um país agrícola?". Antes de mais, quero dizer que não é que não acreditasse, talvez pensasse que se estava a exagerar a situação, porque ainda hoje nós, que conhecemos todos os factos, e, ainda assim, não conseguimos imaginar como é que esta forma de assassínio em massa, como uma fábrica, foi processada. Todos os dias eram enviadas 7 mil pessoas para lá. Dei uma palestra na Universidade Católica de Lisboa e perguntei aos alunos porque é que achavam que não eram 7500 ou 6 mil, mas sim 7 mil? E eles não sabiam. Eu disse-lhes que era porque isto era como se fosse uma fábrica, porque eles só tinham espaço para um certo número de pessoas para matar, usando o gás, e também para queimar os corpos.

Uma espécie de decisão técnica?
Uma decisão técnica e muito pensada sobre como organizar isto. Eles nem sequer batiam nas pessoas quando elas chegavam, limitavam-se a mandá-las para o duche, até lhes diziam que depois podiam ir buscar as roupas a determinado sítio, mas claro que não era isso que acontecia. Mas, a determinado momento, uma pessoa teve a oportunidade de fugir de Treblinka, do campo, que estava a cerca de 100 quilómetros de Varsóvia. Regressou ao gueto e contou a toda a gente, a muita gente, o que se estava a passar, que os estavam a enviar para os campos de morte. Mas acha que as pessoas acreditaram nele? Não. Porque se dissermos a alguém que tem cancro e que vai morrer amanhã, a pessoa não vai acreditar. Isto é uma coisa muito humana, todos os seres humanos acreditam que vão sobreviver, todos querem acreditar nisso. Não importa o tipo de custo que se paga, mas isto é um valor básico do ser humano, o viver. Mas os líderes judeus acreditaram nele e foi naquele momento que começaram a organizar-se. Em setembro de 1942, começaram a organizar a preparação para a resistência. Disseram: "precisamos de encontrar uma maneira", mas o problema era que o gueto estava completamente isolado. Começaram a contrabandear armas, a grande maioria compradas no mercado negro, e normalmente não eram espingardas, mas sim pistolas. Começaram a produzir garrafas de gasolina, de género muito primitivo, começaram a construir abrigos nas caves, esconderijos.

Estavam sozinhos ou tinham a ajuda do exército clandestino polaco?
No início, o exército clandestino polaco, e isto sabemos pelos relatórios, não acreditava que houvesse qualquer hipótese de esta revolta no gueto, esta luta, ser bem-sucedida. Isto aconteceu mesmo com o exército clandestino polaco local até porque, em primeiro lugar, não tinham armas suficientes para vender, mas também havia uma espécie de cálculo. A questão era, se dessem armas aos judeus e estes fossem mortos em poucos dias pelos alemães, se perdessem, seria um desperdício de armas.

Na mente dos líderes do exército clandestino polaco, já existiam planos para uma insurreição geral em Varsóvia?
Sim, penso que pensaram nisso, mas sabemos pelos relatórios, e falando de abril de 1943, o mês em que começou a revolta de Varsóvia, estavam ainda muito longe da preparação para o ano seguinte.

Mas foi uma decisão pragmática?
Penso que a revolta do gueto de Varsóvia teve uma influência enorme e incrível no ano seguinte, na insurreição de Varsóvia. A experiência dos combatentes, dos judeus, até porque se os judeus podiam lutar quase sem apoio, então os polacos todos podiam fazer mais. Além disso, no ano seguinte, os Aliados estavam mais perto de Varsóvia e havia muito mais possibilidades de enviar paraquedas com ajuda, mas nessa altura não eram muitos. Mas os judeus - porque tínhamos um governo no exílio em Londres e o representante da comunidade judaica também estava nesse governo - estavam a pressionar o governo polaco no exílio para dar a ordem de começar a fornecer mais armas ao gueto. E foi o que aconteceu, começaram a dar mais armas, estamos a falar de algumas armas, não de milhares de armas. Mas a decisão dos judeus que estavam no gueto, dos líderes, foi que queriam decidir como morreriam, não queriam morrer sem lutar, mesmo que soubessem que não teriam hipóteses de ganhar contra um poder tão grande como os nazis. Mas isto foi muito simbólico, este foi o momento em que eles mostraram a resistência e mostraram que os judeus não iriam como cordeiros para o matadouro, ao contrário do que se dizia. Decidiram lutar, mas também precisamos de compreender a condição dos judeus. Há um mecanismo muito importante que quero explicar - e muitos historiadores não dão atenção a isso - , mas, antes de mais, o processo de desumanização dos seres humanos começou desde a ocupação alemã de 1939. Em 1940, já era um gueto, as pessoas estavam muito fracas, havia fome, já se chegava a viver exemplos de canibalismo no gueto. Consegue imaginar? Era uma altura em que as pessoas não podiam andar. Temos muitas fotografias de pessoas deitadas na rua, crianças na rua. E a segunda questão é a responsabilidade coletiva. Quando estão de pé, têm os pais à vossa volta, têm os filhos, e tentam lutar e fazer resistência para que os alemães não os matem. Antes de mais, aos olhos deles, os alemães matavam-lhes os filhos, os pais, os amigos, era para isso que eles olhavam. Este foi um momento em que as pessoas ficaram aterrorizadas e assustadas, foi o momento em que começaram a grande deportação, de julho a setembro de 1942. Foi nessa altura que mandaram as crianças e os velhos, deixando cerca de 50 mil pessoas no gueto que ainda podiam trabalhar, os jovens produtivos que podiam trabalhar nas pequenas fábricas alemãs. E foi neste momento que eles perderam o medo e quiseram começar a ver sangue alemão nas ruas.

Quanto tempo conseguiram resistir ao ataque alemão?
Os alemães também escolheram uma data muito especial, a véspera de um feriado judaico muito importante, Pessach. Este é o feriado que marca a história de quando os judeus deixaram o Egito com Moisés e foram para Israel. E é um feriado muito simbólico porque simboliza para nós a liberdade, é um feriado em que toda a família está reunida. Acho que houve propósito nisto, foram muitos os judeus, as crianças em particular, que encontravam abrigo do outro lado, no lado ariano, que tinham vindo no dia anterior para o gueto, mas isto era uma armadilha. Na véspera, dia 18 de abril, os alemães cercaram muito bem o muro e ninguém podia sair do gueto. Isto foi uma grande surpresa, porque no primeiro dia, já 19 de abril, quando os nazis chegaram, os judeus já estavam preparados e começaram a disparar, começaram pelas garrafas de gasolina e foram mortos alguns alemães das SS e das tropas da polícia. Acabaram por abandonar o gueto, mas a decisão de Himmler foi mudar de comandante. E o comandante responsável pela liquidação do gueto de Varsóvia foi o general das SS Jürgen Stroop, que depois escreveu um relatório especial, dia após dia, sobre o que se estava a passar, como um burocrata. Sobre como estava a decorrer o processo de liquidação do gueto de Varsóvia. E outra data muito simbólica, do fim do gueto, é 16 de maio. Foi mais de um mês de luta, mas foi este o dia em que Jürgen Stroop deu a ordem para rebentar com a grande sinagoga, uma sinagoga muito bonita, enorme. No seu relatório depois disse que o bairro judeu de Varsóvia - porque os alemães não lhe chamavam gueto - já não existia, porque os judeus escondidos nos abrigos decidiram fazer explodir e incendiar casa após casa. É por isso que o bairro onde ficava o gueto é um enorme cemitério, nunca ninguém tirou os ossos. Não restou nada, queimou-se tudo, parece quase como em Hiroshima e Nagasaki.

E, nesse momento, a revolta estava terminada?
Sim. Algumas pessoas escondidas em diferentes sítios ou fora do gueto usaram os esgotos para tentar encontrar alguns abrigos fora do gueto, alguns conseguiam se tivessem amigos polacos católicos ou se encontrassem uma boa pessoa que estivesse disposta a ajudá-los. Mas a situação era, de um modo geral, muito, muito difícil. Os que sobreviveram, sabemo-lo pelos testemunhos, decidiram alistar-se no ano seguinte, quando em agosto de 1944 começou a revolta de Varsóvia. Todos os do gueto que sobreviveram fizeram parte da revolta seguinte, porque eles lutavam pela pátria, pela Polónia. E porque é que esta revolta é tão importante, tanto para judeus como não judeus? Porque é um símbolo de resistência, mostra que mesmo sem esperança devemos lutar, devemos fazer tudo o que é possível para resistir.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, quantos judeus ainda existiam na Polónia?
Sobreviveram os judeus que estavam nos abrigos, escondidos fora do gueto, e alguns que vieram dos campos que foram libertados. Os historiadores calculam que eram 50 mil, mas houve outros, cerca de 260 mil, que regressaram da União Soviética. Porque temos de nos lembrar que a Polónia foi invadida em 1939 por dois lados. Hoje somos 15 mil judeus a viver na Polónia. Não esquecer que houve antissemitismo durante o regime comunista.

leonidio.ferreira@dn.pt

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