A reforma do Scooby, o guerreiro e rijo transmontano Eduardo
Acordar reformado tem um sabor diferente. Falta o cheiro da relva, mas transborda ansiedade e entusiasmo com o novo projeto. Eduardo despediu-se do futebol no sábado passado, com um triunfo sobre o FC Porto. Aos 37 vai integrar a equipa técnica de Carlos Carvalhal no Sporting de Braga. Para trás fica "uma carreira bonita". "Se podia ter sido diferente? Podia." Mas ele teve "mais do futebol do que alguma vez sonhou" o menino nascido a 19 de setembro de 1982 em Trás-os-Montes, onde as oportunidades não abundam e o futebol tinha e tem pouca expressão.
A baliza "sempre" foi o seu lugar preferido. "Nunca joguei noutra posição. Sempre gostei de me atirar para o chão e evitar que os meus irmãos marcassem golos. Eu nasci para estar numa baliza", confessou o agora ex-guarda redes, que começou a jogar no Mirandela no início dos anos 90. Foi o amigo Rui Borges (treinador da Académica) que o chamou para o futebol. Ele foi mas não disse nada ao pai. Quando regressou a casa, já de noite e cheio de medo, ouviu das boas, mas quando o pai, "um apaixonado do futebol", soube que gostaram dele "a coisa passou".
Foi lá no nordeste transmontano que andou feliz da vida a jogar de pelado em pelado, a madrugar para fazer quilómetros e quilómetros para poder jogar. Ainda demorou até o Scooby - alcunha ganha por gostar dos desenhos animados Scooby Doo, o cão que resolve problemas - perceber que podia "alcançar alguma coisa". O caminho não foi fácil. As dificuldades traçaram-lhe o caráter à custa de suor e lágrimas. O pai morreu num acidente numa noite da passagem do ano. Ele estava no carro e foi projetado. "Tinha 11 anos e já tive noção da perda. O meu pai era o nosso sustento. Trabalhávamos numa quinta e tivemos de sair depois da morte dele e procurar outra casa e forma de vida. Não estávamos preparados para isso. Passámos algumas dificuldades. Lembro-me delas muitas vezes quando penso no que consegui. Foram tempos muito difíceis. Ele era o nosso pilar, sofremos muito mas somos pessoas de muito trabalho e felizmente conseguimos dar a volta", contou ao DN, lembrando que o pai haveria de gostar de ver o que ele conseguiu no futebol.
O talento que começou nos terrenos agrícolas da Quinta das Andorinhas nos arredores de Mirandela despertou depois o interesse do Vitória de Guimarães: "O meu pai tinha acabado de morrer. Ir viver sozinho com 12 anos não é fácil. Exige muito de nós, exige um crescimento mais rápido, exige deixar de brincar e ter responsabilidade muito cedo, não foi fácil, mas se calhar foi isso que me transformou no que sou hoje, um rijo transmontano."
A aventura na Cidade-Berço foi dura. Foi dispensado e ainda recusado pelo FC Porto e pelo Sporting. Houve momentos em que pensou que se o futebol "não desse" a solução seria emigrar para o Luxemburgo para onde a mãe e os irmãos tinham ido à procura de uma vida melhor. Depois "o Rochinha", que o tinha amparado em Mirandela, levou-o ao Sp. Braga. Tinha 15 anos e decidiu agarrar-se ao futebol.
Com uma carreira assente no trabalho e persistência, Eduardo ainda teve de palmilhar muito campo secundário até chegar ao palco principal. Estreou-se na I Liga com 24 anos, na época 2006-07, com a camisola do Beira-Mar e pela mão de Carlos Carvalhal: "Perdemos por 1-0, com o Paços de Ferreira, sofri um golo de livre, mas lembro-me de que estive bem no jogo." Foi o início de um trajeto "cimentado", que o levaria a Setúbal. Com o contributo dele, o Vitória conquistou uma Taça da Liga. Depois foi chamado à casa-mãe: o Sp. Braga. Foi lá que fez "algumas das melhores defesas" e ganhou uma nova alcunha - "Animal" -, por passar horas no ginásio e não gostar de brincadeiras nos treinos.
Não demorou a ser falado para a seleção. A cada pré-convocatória a ansiedade aumentava, até que um dia Queiroz o chamou. "Tinha noção de que podia ser chamado, mas quando aconteceu foi um motivo de muito orgulho. Representar Portugal é tudo para mim, é o ponto máximo da carreira de qualquer jogador. Ainda mais numa seleção como a de Portugal, com uma geração fabulosa", confessou o guerreiro, que se estreou na baliza nacional, em 2009, num particular com a Finlândia. Foi a primeira de 36 internacionalizações, coroadas com dois mundiais (2010 e 2014) e dois europeus (2012 e 2016). Muitos não sabem, mas Eduardo foi ao Mundial 2006 como adepto. Foi ver dois jogos com o ex-colega Paulo Santos. E foi aí que se atreveu a sonhar com a baliza nacional, onde chegou a estar 400 minutos sem sofrer golos.
O "Terminator", alcunha dada pelos colegas na seleção em alusão ao filme Exterminador Implacável, foi titular no Mundial 2010 e suplente no Euro 2016. Se só pudesse escolher um... "Eu sou um jogador de equipa. Independentemente de querer jogar sempre, faço tudo pelo grupo. Encarei os dois da mesma forma, mas a felicidade foi maior no Euro 2016. Portugal conseguiu algo que nunca tinha conseguido e estar no lote que atingiu a maior conquista do futebol português não tem preço, apesar de não ter jogado. É óbvio que gostava de ter participado, mas a minha felicidade foi igual", respondeu.
Quando acabou o jogo com a França (1-0), andou com Eder, o marcador do golo decisivo, às costas. A imagem correu o mundo: "Queria estar com ele, dizer-lhe o quanto estava feliz por aquilo que ele tinha acabado de fazer. Foi um jogo sofrido, dramático, mas tivemos qualidade e maturidade suficiente para levar por vencida a França." Esse seria também o adeus não planeado à seleção. "Gostava de ter ido mais vezes", mas "há um momento para tudo" e ele compreende que era preciso fazer uma renovação.
Teve a carreira que quis ter? Podia ter sido diferente? "Tive mais do que aquilo que sonhei. Tive uma carreira bonita, conquistada com muito trabalho, se calhar com mais trabalho do que talento, mas um orgulho enorme no meu trajeto e da forma como o fiz. Podia ter sido diferente, claro. Melhor ou pior, não sei. Era fácil dizer agora que mudava isto e aquilo, mas a vida é feita de escolhas e eu decidi sempre pela minha cabeça e o que foi, foi..." Não é toda a gente que chega à baliza do Benfica, mas ele não individualiza.
Cresceu a olhar para Preud"Homme, mas foi-se deixando seduzir por Buffon e por Casillas. Ser guarda-redes foi "solitário" em alguns momentos: "O erro do guarda-redes por vezes serve de desculpa para muita coisa, é mais visível e passível de escrutínio." Ele lida mal com o erro próprio e culpou-se muitas vezes, mas foi aprendendo a lidar com isso. Assim como se foi habituando a acabar jogos com ossos das mãos fora do sítio. Mãos que viram passar milhares de luvas e deram muitos apertos de mão. Alguns podiam ter sido evitados. Fez amigos para a vida no futebol, mas nem tudo foram rosas. Houve alguns espinhos, pessoas que se aproveitaram da fama dele. Sem vergonha, admite que confiou "em gente que não devia", mas afinal de contas "ninguém conhece as pessoas à primeira vista"...
E quem é afinal o Eduardo Carvalho por detrás do guarda-redes que agora se reforma? "Não sei. Acho que é uma pessoa generosa, amiga do amigo, que gosta de estar no seu canto sem holofotes, que gosta das coisas como elas são, doam ou não. Uma pessoa que gosta da verdade e tenta ser o mais genuíno possível. Um homem de fé, que gosta de ouvir fado (já cantou com Ana Moura) e é um bom garfo como qualquer transmontano", respondeu timidamente. Adora um bom bacalhau à Brás, uma boa feijoada ou um naco de vitela. E se for feito pela mãe, melhor, embora ele também goste de cozinhar e de receber amigos em casa. Tirando o futebol, perde tempo a colecionar vespas. Não diz quantas tem, mas sabe agora que vai poder dar-lhes uso. Isso e ter tempo para brincar com a filha, Leonor.
Com 552 jogos na carreira, tem dificuldade em escolher o pior e o melhor. "Há lances de alguns jogos que me marcaram bastante. Um Noruega-Portugal em que chutei uma bola contra um adversário e o lance deu em golo e perdemos 1-0. Um jogo em Braga com o PSG em que falhei um cruzamento e perdemos 1-0...", revelou, lembrando que os jogos bons foram mais do que os maus. E entre os bons, mas com sabor amargo, está aquele jogo de Portugal com Espanha no Mundial 2010. A seleção perdeu, por 1-0, com um golo de Villa, e Eduardo foi eleito o melhor em campo, mas acabou o jogo em lágrimas e confortado por um dos ídolos (Casillas). Não foi a única vez que verteu lágrimas de quinas ao peito. Também chorou de emoção e alegria ao ouvir o hino naquele jogo do play-off com a Bósnia, em 2011, que valeu o apuramento para o Euro 2012.
Bicampeão croata pelo Dínamo Zagreb e com passagens por Génova, Benfica, Istambul BB, Chelsea e Vitesse, faltou-lhe um título português. Talvez o consiga agora, nas novas funções. Eduardo vai deixar de ser "protagonista" e espera estar ocupado a preparar o melhor treino possível para os seus guarda-redes para não querer ir para a baliza. A saída de Vital para o Sporting abriu uma vaga e trabalhar com Carvalhal de novo foi um aliciante extra. Foi com ele que se catapultou para a primeira linha do futebol nacional: "É um treinador exigente como eu e vai facilitar a minha transição."
Tinha mais um ano de contrato com os guerreiros, mas optou pelo adeus. "Não foi uma decisão fácil. A ideia andou às voltas na cabeça durante muito tempo, mas chegou a uma altura em que tive de a encarar de frente. Foi até certo ponto uma decisão ponderada, mas que custa sempre. O facto de continuar no futebol e no campo vai aliviar um pouco as saudades", confessou o ex-jogador, que já tem ideia do que fazer.
Segundo Eduardo, é "preciso evoluir" no trabalho com os guarda-redes em Portugal: "A nível não só de treino, mas de prospeção e, quem sabe, criar até departamentos de acompanhamento específicos. Sabemos que a posição de guarda-redes é a mais difícil quando se erra e, por vezes, criam-se ilusões grandes nos miúdos... que acabam por abandonar facilmente. Temos de dar mais condições a estes jovens."
Se não fosse a pandemia e o facto de o Sp. Braga ainda lutar pelo terceiro lugar (que conseguiu), talvez a despedida pudesse ter sido diferente. Mas sem público também não havia o porquê de ir para a baliza. Foi suplente a maior parte da época, apesar de ainda ter jogado no campeonato, na Taça de Portugal e na Taça da Liga. "Azia? Ninguém gosta de ficar no banco, mas o banco é melhor do que a bancada. Sempre me ensinaram a ter enorme respeito pelas decisões dos treinadores, mesmo que não concorde e eu tive situações dessas também, como é óbvio, mas o treinador escolhe com base naquilo que acha que é o melhor para a equipa e o jogador tem de ter uma visão mais coletiva." Trabalhar em prol de um objetivo coletivo é um lema que se habituou a seguir: "Não é só quando se joga que é bom, por vezes é preciso torcer de fora."
"Fascinado" pelo futebol, Eduardo está ansioso pela nova etapa. Já está na altura de o Sp. Braga ser campeão? "Não é fácil, mas é um clube que se tem intrometido na luta, que já esteve perto de ser campeão e que a qualquer altura pode chegar lá", avisou, lembrando que esse é o "grande sonho do presidente" António Salvador, uma "pessoa bastante ambiciosa, exigente, que quer o máximo de toda a gente todos os dias e adepto da excelência". Assim como o Scooby das balizas.