Já lá vão 46 dias desde que todas as instituições de ensino em Portugal foram encerradas, da creche ao 12.º ano. O fecho das escolas foi uma das primeiras medidas de contenção da pandemia de covid-19, a 13 de março, cinco dias antes da declaração do estado de emergência no país..Pais e filhos confinados em casa. Nas redes sociais, proliferam "manuais de sobrevivência", com dicas e conselhos para gerir o dia-a-dia sem ficar à beira de um ataque de nervos, já para não falar dos memes humorístico-desesperadoscomo aquele que dizia que depois de não sei quantos dias de isolamento, telescola e teletrabalho eram os pais que iam desenvolver uma vacina para o covid-19..E isto apesar de, em Portugal, as medidas de restrição não terem sido tão rigorosas como em Espanha, que proibiu totalmente as crianças de sair de casa, o que levou o vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias a pedir desculpas publicamente aos mais novos, no dia em que anunciou que passariam a poder sair durante uma hora para brincar e fazer pequenos passeios com os pais, no raio de um quilómetro de casa..No domingo foi notícia que no dia 1 de junho, Dia Mundial da Criança, as creches reabrirão. Fontes do Ministério do Trabalho, que tutela a Segurança Social, responsável pelas creches, assim como do Ministério da Educação, que tutela o pré-escolar, contactadas pelo DN, garantiram que a notícia não saiu destes ministérios e que tudo está em aberto. ."Só depois da reunião com os epidemiologistas e outros especialistas do Ministério da Saúde, que terá lugar no dia 28, e da reunião com os partidos e outros parceiros, no dia 29, é que serão tomadas as decisões relativas ao desconfinamento que determinarão o que será reaberto, como e quando", disse fonte do Ministério da Educação, que não descarta a hipótese de também o pré-escolar reabrir portas. Ou não.."É impossível com estas idades adotar as medidas de proteção que evitam a propagação do vírus".Aldina Cabrol, 62 anos, educadora de infância há 40, não compreende a decisão de começar a abrir pelas creches, a não ser pela pressão de os pais voltarem ao trabalho, porque não está a ver como é que na prática, num contexto de pandemia em que se tem de adotar medidas de proteção rigorosas, se irá operacionalizar esta reabertura.."Não queria estar na pele dos nossos governantes, isto é como um lençol curto, tapa de um lado e destapa do outro, mas o que me parece é que as pessoas não têm mesmo noção do trabalho que se faz em creche e pré-escolar, continuam a pensar que é só tomar conta", diz a educadora que, na sua longa carreira, já passou por todas as valências, desde berçário a creche e pré-escolar, no privado e no público, onde está agora..A creche, explica, vai dos 0 aos 3 anos e geralmente está organizada por berçário, dos 4 meses à aquisição de marcha e depois pode haver salas de 1-2 anos e de 2-3 anos ou heterogéneas, de 1 a 3.."Em berçário, para ter uma noção, são duas pessoas para dez crianças, com horários desfasados e, apesar de os meninos não andarem, estão em contacto uns com os outros e com os adultos num espaço físico limitado. Além disso, o trabalho pedagógico exige muito contacto humano, para um bom desenvolvimento da criança, se o adulto estiver de máscara a criança não sabe se está a sorrir ou não, não vê a nossa expressão, não nos reconhece, não sabe se estamos contentes ou tristes. E depois há a parte prática, da muda de fralda, do dar a papa, do dar a sopa, que exige um contacto que nos moldes em que se está a pensar fazer não é possível sem afetar o desenvolvimento da criança. Quando começam a gatinhar a interação com os outros é ainda maior e deixá-los confinados ao berço é uma regressão à pré-história da pedagogia infantil", diz..Nas salas de 1 a 2 anos, os mesmos dois adultos têm a seu cargo 14 crianças e dos 2 aos 3 estas passam para 18. Em pré-escolar são 25.."Mesmo que imaginem uma solução que reduza o número de crianças por sala, nestas idades, em que não param quietos, é impossível controlar o contacto entre eles ou fazê-los adotar qualquer dos comportamentos de proteção que evitam a propagação do vírus", diz Aldina Cabrol, que chama ainda a atenção para o facto de depois de um mês e meio em casa com os pais os meninos terão muito mais dificuldade de se separar deles.."É sempre preciso dar colo e carinho para os confortar. Como é que podemos fazer isso agora?", pergunta a educadora de 62 anos, que diz que, ao contrário do que se pensa, são muitas as profissionais acima dos 60 que trabalham em creche e pré-escolar, o que as coloca no grupo de risco.."Quanto mais pequeninas são as crianças, mais disponibilidade exigem".Também para o pedopsiquiatra Pedro Strecht a decisão de reabrir creches percebe-se à luz da necessidade dos adultos, "mas será muito difícil para os miúdos e para as educadoras e as auxiliares que trabalham com eles"..O médico não tem uma visão cor-de-rosa da quarentena e de como esta pode ser uma oportunidade de pais e filhos terem finalmente (todo) o tempo de qualidade juntos que não têm no dia-a-dia da "vida normal".."Sim, estão há um mês e meio com os pais 24 horas por dia, mas na maioria dos casos os pais estão em teletrabalho ou em lay-off ou acabados de perder o emprego ou a gerir negócios que nesta fase trazem mais angústia que outra coisa e tudo isso prejudica a disponibilidade e a disposição e leva a que a qualidade da relação possa não ser fácil. Não é a mesma coisa que estar de férias, sem preocupações e as tensões externas a que a maioria das pessoas estão sujeitas", diz..Daí que olhe para a possibilidade de reabertura de creches das várias perspetivas. Para os pais pode ser um alívio, porque podem voltar a trabalhar descansados, mas também pode ser uma angústia, pelo medo da doença, que está mais disseminado do que o próprio vírus..A psicóloga Rute Agulhas, que escreveu o "Manual de primeiros socorros para pais e filhos", também está preocupada com o lado dos pais. "Em casa ou a trabalhar, sentir-se-ão seguros ao deixar os filhos em contexto de grupo? 'O meu filho contacta com a educadora e a auxiliar, bem como com as outras x crianças da sala... e com quem contactaram cada uma destas outras pessoas?' Este é o raciocínio e a preocupação que paira na cabeça de muitos pais... Penso que temos de nos focar no impacto emocional que esta eventualidade pode ter, não apenas nas crianças mais velhas (com cinco ou seis anos), que já compreendem o que se passa e podem sentir receio (ou até manifestar reações fóbicas) em regressar ao Jardim se Infância, como também nas suas famílias", diz..O regresso não será fácil, sobre isso não há grandes dúvidas.."Quanto mais pequeninas são as crianças mais disponibilidade exigem. Até aos 4 anos uma criança pede a disponibilidade continuada do adulto, não se organiza, não brinca nem se entretém sozinha", diz Pedro Strecht. Isto aplica-se tanto em casa como na escola, cuja reabertura suscita questões que devem ser tidas em consideração.."Antes de mais, as crianças pequenas não têm qualquer capacidade de adotar os comportamentos de proteção exigidos e, embora do que se sabe, pareçam ser os mais imunes à doença e sobretudo às suas formas mais graves, não deixam de ser portadores e de a transmitir", diz Pedro Strecht que dá razão às preocupações da educadora Aldina Cabrol.."Depois de tanto tempo em casa com os pais, sentirão o regresso à creche com a ansiedade da separação, como se fosse pela primeira vez. Além disso, como é que uma criança de 3 anos, por exemplo, vê a educadora de repente de máscara e luvas? Não percebe, até porque em casa os pais não usam máscara e mantêm o contacto físico, os abraços, os beijinhos, o colo. A reação normal de um miúdo de 3 anos é puxar a máscara à educadora ou chorar por vê-la de máscara.".O controlo do distanciamento físico e a adoção de medidas de proteção em creche e jardim-de-infância será missão impossível, de acordo com o especialista, que lembra que tirar a chucha uns aos outros (e trocarem) é uma das atividades mais comuns quando há muitos bebés juntos. "Nestas idades não têm a compreensão da linguagem necessária, não adianta dizer para se manterem afastados, que eles não percebem.".Para Pedro Strecht, mais importante do que pensar na reabertura de creches, seria refletir sobre a necessidade de reabrir as escolas de forma faseada e protegida.."Não é por causa da matéria perdida, que essa recupera-se, mas pelo que os miúdos estão a perder de convívio com os colegas e os amigos, de relação com outros adultos que não a família, de rotinas fora de casa, de brincadeira, de ar livre. Tenho alguns miúdos que consulto fora de Lisboa e arredores e a experiência é totalmente diferente. Não estão tão confinados porque há muito mais espaço exterior para onde podem ir. Mas nas grandes cidades os miúdos estão fechados há mês e meio. Além da escola, deixaram de ter as atividades extracurriculares - música, desporto, dança - que foram interrompidas ou continuam, mas à distância, e que eram também um tempo de estar com amigos. Isto terá inevitavelmente um impacto que vai marcar a memória futura dos miúdos. Ainda há de celebrizar-se a frase 'onde é que estavas quando foi o covid?'", diz o pedopsiquiatra..A Pedro Strecht não chocaria a reabertura faseada das escolas a 4 de maio, ouvindo muito bem os epidemiologistas, mas adotando uma atitude realista e racional de, com as medidas de proteção adequadas, começar a pensar em retomar a ideia de normalidade.."Com horários desencontrados e adaptados e outras medidas de proteção, mas seria importante uma aproximação mais nítida a uma certa normalidade protegida e cuidada. Não estou a falar de ir ver o Benfica jogar com 50 mil pessoas no estádio, mas de garantir algum equilíbrio, confiando que as pessoas têm capacidade de se proteger a si e aos outros. Está na altura de trabalhar para a autorregulação, até porque me parece que a contenção absoluta e a continuação do confinamento podem ser prejudiciais e levar a uma explosão no sentido contrário", diz o especialista, para quem as crianças nas faixas etárias intermédias são as mais afetadas pelo isolamento e a interrupção da vida normal.."Os mais pequenos, até aos 6 anos, não têm grande perceção do que está a acontecer e estão tranquilos, os adolescentes já têm capacidade para absorver a informação e geri-la com pensamento crítico, os do meio, até aos 12 mais ou menos, absorvem a informação mas ainda não conseguem processá-la, o que causa mais medo e ansiedade. É também para estes que a gestão do tempo é mais crítica."."Estamos a viver num tubo de ensaio".Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para o covid-19, é mais cauteloso. "Temos muito menos casos de covid-19 em crianças do que em adultos e os que temos são formas ligeiras da doença, mas apesar de não ser ainda completamente claro se as crianças são ou não dos principais vetores, temos de assentar as nossas estratégias de proteção da sociedade e dos grupos de risco na presunção de que o são", diz, para justificar a decisão já anunciada de não reabrir as escolas do 1.° ao 10.° ano..Quanto às creches, considera que terão de abrir, de forma faseada, para libertar os pais para irem trabalhar. O que está em avaliação é em que condições se fará essa reabertura.."Poderá ter de se fazer uma avaliação térmica e de sintomas às crianças antes de irem para a escola, assim como a todos os funcionários. Por outro lado, há que continuar a evitar que estejam em contacto com familiares que pertençam a grupos de risco, nomeadamente os avós, que terão de deixar de ser a primeira linha de apoio para ir buscar os netos à creche ou para ficar com eles quando estão doentes", diz, admitindo a evidência de que "a adesão às medidas de controlo da infeção é mais baixa nestas faixas etárias e impossível nas crianças pequenas".."Neste caso, depende totalmente dos adultos. Temos de ir descobrindo estratégias no dia-a-dia e temos de nos reinventar e adaptar, porque é inviável não abrir as creches. Mas cada instituição e cada família terão de ponderar o que fazer para garantir a proteção e fazer o equilíbrio entre normalizar a capacidade económica e proteger os que estão em risco", diz..Abrir de forma faseada, monitorizando como está a correr e beneficiando do exemplo de outros países que já estão a fazê-lo antes de nós, é o que preconiza o coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para o covid-19. "Estamos a viver num tubo de ensaio. Não somos nós que estamos a testar o vírus, é ele que nos está a testar a nós", diz.