À procura dos mitos perdidos

O veterano alemão Alexander Kluge colabora com o cineasta filipino Khavn, propondo uma revisitação delirante do mito de Orfeu e Eurídice.
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Na história do moderno cinema alemão, Alexander Kluge (n. 1932) é uma figura tão fundamental quanto marginal. Digamos, para simplificar: um apaixonado pelas convulsões da história, sempre empenhado em discutir, não apenas os factos, mas também o modo de os narrar. Ou seja, para lá de qualquer redundância: como é que a história se faz história?

Não admira que o seu filme mais recente, Orphea, seja um verdadeiro ovni. Trata-se de uma colaboração com Khavn De La Cruz, cineasta, cantor e pianista das Filipinas (aqui partilhando a realização), conduzida por um desafio temático e estético: nada mais nada menos que revisitar o mito de Orfeu e Eurídice, relançando-o numa paisagem em que os bairros pobres de Manila se cruzam com a música rock, do mesmo modo que as imagens evoluem num delírio em que a teatralidade do espaço coexiste com as mais bizarras manipulações digitais.

Que estamos, então, a ver? Em boa verdade, não parece haver classificação ou descrição que satisfaça o delírio visual e sonoro de tudo aquilo que nos é apresentado. Até porque convenhamos que a tradicional gratificação das expectativas do público não é, obviamente, uma prioridade de Kluge e Khavn.

Há em Orphea algo que nos pode remeter para o conceito de instalação, vigente no domínio das artes plásticas. Ao mesmo tempo, nele se consagra uma noção de cinema (ou anti-cinema, se assim o entendermos) em que a vertigem dos contrastes talvez se possa aproximar de uma noção operática do próprio trabalho de encenação: revisitar os mitos e a nossa perdição.

Na história do cinema alemão, encontramos pelo menos um título que se poderá aproximar desta ousadia de ser e não ser cinema: penso no prodigioso Hitler: Um Filme da Alemanha (1977), de Hans-Jürgen Syberberg, neste caso revisitando a herança histórica e fantasmática do nazismo. Não creio que Orphea se possa comparar com a monumentalidade do trabalho de Syberberg, mas é um facto que nele encontramos a mesma saudável insensatez ética e estética. A saber: o cinema não é uma reprodução do mundo, mas sim a invenção de um novo mundo.

dnot@dn.pt

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