A Porta. Dez dias em que o centro de Leiria foi um imenso palco
Era um ambiente quase de festa popular, o que se vivia na sexta à noite, no Jardim Luís de Camões, em Leiria, mesmo junto ao rio Liz, durante o concerto de Mdou Moctar. Havia porco no espeto, uma pequena rulote de algodão-doce com o sugestivo nome de Miminhos da Avó e, sobretudo, havia muita gente a dançar e a divertir-se, ao som dos blues rock do deserto deste guitarrista e cantor do Níger, cuja sonoridade, apesar de estranha para muitos dos presentes, serviu à mesma para fazer a festa.
"Nunca tinha ouvido esta música, mas dança-se muito bem, comentavam, entre si, duas amigas de meia-idade, com o cabelo pintado de loiro, claramente pouco habituadas - mas nem por isso menos animadas - às sonoridades mais alternativas que compõem o cartaz do festival A Porta, iniciado no dia 14 e concluído apenas ontem, domingo, 23.
Nessa mesma noite, tocaram também os portugueses Bruno Pernadas e First Breath after Coma, que por serem filhos da terra tiveram direito a uma das maiores enchentes de todo o festival. O quinteto leiriense foi quase uma espécie de banda residente da edição deste ano. Além de colaborar com a organização e de os seus membros se terem desdobrado por vários palcos com outros artistas, os First Breath after Coma deram o pontapé de saída do festival com uma performance de improviso musical, na qual atuaram ao vivo durante 24 horas seguidas.
"Era uma ideia que já tínhamos há algum tempo e fez todo o sentido ser realizada aqui, num festival não só de música, mas mais de performance", explica Telmo Soares, um dos membros da banda, reconhecendo que "foi esgotante" estar 24 seguidas a tocar. "Tivemos momentos muitos bons e outros de quase desespero, mas nunca deixámos de ter público", recorda, elogiando o espírito do festival: "Sempre acreditámos muito no conceito deste festival, pelo burburinho criado na cidade, que durante estes dias torna-se toda ela um palco."
Também no dia anterior, quinta-feira, outra ilustre leiriense do mundo da música, Surma, teve direito a lotação esgotada na Villa Portela, uma mansão do século XIX, em tempos pertencente a uma influente família leiriense, que pela segunda vez abriu as portas (neste caso dos jardins) para receber o festival. A sessão, dedicada à Omnichord Records, começou às 16.00 e contou apenas com artistas desta editora leiriense.
"Senti um orgulho enorme, por ser natural do concelho e ter tido o privilégio de tocar naquele sítio lindo, onde nunca tinha entrado", confidenciou Surma ao DN, no dia seguinte. O percurso da artista, que cresceu "numa pequena localidade a apenas 15 minutos de Leiria", está aliás ligado ao festival, pois foi aqui que, "numa das primeiras edições", Débora fez a primeira aparição pública como Surma, com "um pequeno concerto, de cerca de meia hora".
A aposta em artistas locais é uma das premissas do festival A Porta, que começou em 2015 "como um sonho ingénuo e com muito romantismo à mistura", como recorda ao DN o diretor do festival, Gui Garrido, 35 anos. O objetivo passava então por "criar novos espaços e tempos na cidade", em especial no centro histórico, cuja vida de outrora há muito esmoreceu. Começou então como um festival de quatro dias, que ocupava lojas, casas, cafés e até algumas ruínas na Rua Direita, a principal artéria do centro histórico leiriense. Com o tempo, porém, o festival foi-se alargando, no tempo e no espaço, prolongando-se hoje durante dez dias e um pouco por toda a cidade.
"Sentimos que a cidade nos abraçou, artistas, lojistas, proprietários e patrocinadores, mas especialmente a população. Fico muito feliz pela curiosidade do público, que, mesmo sem conhecer ou até às vezes gostar, está disponível para descobrir coisas novas e diferentes", sublinha Gui. E, apesar de quase todos os eventos serem gratuitos, "os poucos que eram pagos", como o espetáculo Villa Omnichords ou o concerto de Manel Cruz e JP Simões, no Teatro José Lúcio da Silva, "também tiveram lotação esgotada".
A conversa com o responsável pelo festival tem lugar no restaurante do Atlas, um hostel instalado num edifício histórico, mais ou menos a meio da Rua Direita, que em tempos funcionou também de palco ao A Porta e que por estes dias estava praticamente lotado com hóspedes ligados ao festival - artistas mas também muito público. "Só faz sentido continuar se houver consequências. Este festival não é um projeto umbiguista, só para alguns, mas para toda a comunidade. Isto não é só música. Pretendemos celebrar a cidade e a cada ano estamos a conseguimos atrair mais gente de fora. Acima de tudo, existe muita gratidão, por quem vem e por quem nos ajuda a fazer o festival", refere Gui.
O ponto alto do festival continua a ser no sábado à tarde, quando todos os caminhos vão dar à Rua Direita, o epicentro inicial do A Porta, onde nesse dia tudo acontece, atraindo uma verdadeira multidão. Muita música, claro, que invade espaços como a oficina de bicicletas do Sr. António, a Igreja da Misericórdia, as chapelarias Liz e Fonseca (sim, são mesmo duas, uma ao lado da outra) ou o jardim do centro cívico, mas também exposições, uma feira vadia com um sem-fim de bancas de rua (de discos usados a cosméticos artesanais, passando por produtos biológicos ou adoção de animais abandonados) e, especialmente, muitas atividades para as crianças, como ateliês de música, de graffiti, de representação e até de montar e desmontar aparelhos eletrónicos.
"Aquilo de que mais gosto é de olhar para o público e ver toda a gente misturada, sem conseguir identificar um padrão", elogia Gui. De facto, esse é mesmo o grande feito do festival A Porta, o modo como consegue congregar tanta gente diferente, à volta de propostas tão alternativas, como aquelas duas velhas senhoras, à janela, com os cotovelos apoiados em almofadinhas, que não perderam pitada do concerto dos Slift, um histriónico power-trio francês de garage rock. Quem é que disse que os festivais são hoje todos iguais?