"A pessoa que desfrute do que lhe apetece beber e do que lhe apetece comer"
Não faltam peças na casa-museu a lembrar que a José Maria da Fonseca é uma empresa com quase dois séculos, e simbolicamente uma parede expõe garrafas embrulhadas em papel azul e branco, as cores da monarquia, enquanto outra o faz no vermelho e verde da república. Estou a explorar um pouco os cantos à casa quando vem ter comigo Sofia Soares Franco, responsável pela comunicação da José Maria da Fonseca e membro da família que vai já na sexta geração à frente da empresa de vinhos que tem o moscatel de Setúbal como o grande emblema e as marcas Periquita, primeiro tinto engarrafado em Portugal, e Lancers, um bestseller internacional, como trunfos. E enquanto não chega para o nosso almoço aqui em Azeitão, Domingos, o tio enólogo, aponto para um quadro com uma complexa árvore genealógica e pergunto a Sofia como é que dos Fonseca do fundador se passa para os Soares Franco. "Nós somos descendentes do casal José Maria da Fonseca e Maria Augusta Soares Franco. Eles tiveram uma filha, Sofia, que se casou com Henrique da Gama Barros, um constitucionalista famoso da época, mas estavam pouco ligados ao negócio. A empresa é então vendida a uma prima e a partir daí não volta a mudar de proprietários. Sempre na família. Quem está à frente hoje é o meu pai, António, e o tio Domingos, mas a sétima geração está também já envolvida."
Nem de propósito. Eis que chega Domingos Soares Franco, sorridente, creio que me reconheceu de um almoço recente na inauguração do Wine Corner, o restaurante que associa vinhos da José Maria da Fonseca com petiscos da região e que fica num dos extremos do edifício onde se situa a casa-museu. São meia dúzia de passos e logo nos sentamos à mesa, no interior, que o dia está frio, apesar de o Wine Corner contar com uma bela esplanada.
Domingos, o famoso DSF, está satisfeito com a válvula coronária que há umas semanas implantou e que eliminou o cansaço que antes sentia ao fim de caminhar um pouco. E até se ri a pensar em quem lhe telefona a prometer visita por pensar que está acamado. Fosse verão e já andaria no barco pelo Sado, uma das suas muitas paixões. Mas quando lhe pergunto se é do Vitória de Setúbal, afinal o meu clube e da minha terra, desengana-me logo: "Sou benfiquista, mas a minha mãe, Helena, era do Vitória. E o meu pai, Fernando, era um grande adepto do Belenenses", diz Domingos, lisboeta de nascimento, criado em Azeitão e que fez os anos finais do liceu em Setúbal. Sofia intervém para contar que por causa de o primo Filipe Soares Franco ter sido presidente do Sporting passa a vida, sendo também benfiquista, a esclarecer que é das águias e não dos leões. A Domingos acontece o mesmo, confirma, bem-disposto.
A ementa tem petiscos novos, pensados para o inverno pelo chef Luís Barradas, setubalense que ajuda o Wine Corner a ser fiel à ideia de usar produtos regionais de Setúbal, a sede do concelho, e Azeitão. Os vinhos, esses, são servidos à garrafa ou a copo para quem quer fazer uma espécie de pairing, ou harmonização. Porém, Domingos diz-me logo que não lhe pergunte que vinho vai melhor com cada petisco, ri-se um pouco das "modernices" e acrescenta: "A pessoa que desfrute do que lhe apetece beber e do que lhe apetece comer. Obviamente não vamos pôr um vinho branco leve com um bacalhau, não é? Ou com uma carne extremamente maturada."
O pretexto para esta conversa é o lançamento de mais dois vinhos da DSF Coleção Privada, ou seja vinhos que pretendem mais do que quaisquer outros refletir a personalidade deste homem de 65 anos, um dos pesos-pesados na enologia em Portugal, ainda que de há uns tempos para cá se tenha começado a autointitular fermentador e a dar "até cartões-de-visita com fermentador por baixo do meu nome", diz, entre risos. Já lá iremos às explicações, pois acaba de vir para a mesa uma das novidades DSF, o Cabernet Sauvignon/ /Malbec 2017. Falamos um pouco da Argentina e de como, digo eu, os seus embaixadores cá em Portugal sabem muito bem fazer a diplomacia do vinho servindo nos jantares ou nas receções sempre um Malbec, casta que em França tinha fraca fama, mas que na América do Sul ganhou nova vida: "Os argentinos conseguem fazer vinhos extraordinários, provei coisas extraordinárias, Malbec com Cabernet, e tenho aqui isso mas no fundo este vinho agora é também fruto das saudades da altura em que lá estive. Nunca vivi lá mas fui muito lá. E fiquei encantado pelo Malbec."
O enólogo confessa a paixão pelos vinhos do Novo Mundo, pelos vinhos das Américas em geral. E é quase inevitável não se ver no curso que fez nos Estados Unidos a origem dessa paixão. Fico a saber que os anos de 1974 e 1975 foram muito complicados para a família, que o fervor revolucionário chegou a ameaçar a José Maria da Fonseca mas, salienta Domingos, "a lealdade dos trabalhadores foi total, muitos passaram noites na empresa para a proteger" e isso evitou o pior, sendo que a onda de nacionalizações nunca chegou aos vinhos. Ora, nesse ambiente complicado, e com as portas do Instituto Superior de Agronomia fechadas para certo tipo de alunos, ainda houve a hipótese de ir estudar enologia para França, com Bordéus, Montpellier e Dijon como possibilidades, mas o ter de repetir alguns anos de liceu por causa do francês foi um grande contra.
Até que um dia, num jantar onde estava um amigo americano do pai, se levantou a ideia do curso nos Estados Unidos. "Na época, sair dinheiro de Portugal era uma complicação e por isso os meus pais não estavam muito convencidos, mas o nosso amigo afiançou-lhes que me pagava as despesas todas, me sustentaria como se fosse seu filho, e eles um dia, quando a situação normalizasse, lhe pagariam. Disse que sim, logo, e ainda me recordo do meu pai e da minha mãe a olharem para mim. Acho que imaginaram que era uma partida para sempre", conta. E as incertezas eram tão grandes na época que o pai ofereceu aos filhos um caderninho com os endereços e os números de telefone no estrangeiro dos principais amigos, para que em caso de o casal ter de sair à pressa de Portugal os filhos o pudesse contactar.
Depois de uns meses na costa leste num colégio interno a refrescar o inglês (o frio na escola de pedra na Nova Inglaterra deixou trauma até hoje), o destino, quando as matrículas abriram na América, foi a Universidade da Califórnia em Davis, cidade a uns cem quilómetros de São Francisco. Aí estudou entre 1976 e 1981, e segundo o diploma que descobriu recentemente entre as papeladas antigas, conta, "afinal sou licenciado em Ciências de Fermentações. Tenho formação em cerveja, queijo, pão, vinho, veja lá", e volta a rir-se aquele que já foi considerado o enólogo do ano tanto por revistas especializadas portuguesas como estrangeiras.
Admite que fez algumas "asneiras" ou "loucuras" nos anos americanos, como fazer como nos filmes e acelerar pelas colinas de São Francisco a ponto de o carro saltar, mas o objetivo era o curso e o curso foi feito. E, mais do que o diploma, aprendeu mesmo muito, sublinha: "Aprendi muito, muito sobre vinhos na América. Sou um grande defensor dos vinhos do Novo Mundo. A Europa finalmente começou a aprender que o Novo Mundo existe e deixou de ter o preconceito de que nós europeus é que sabemos mais e que o resto do mundo não percebe nada. E não, o resto do mundo sabe tanto ou mais do que nós."
Coube a Sofia ir fazendo os pedidos, por ser já conhecedora da ementa mais invernal no Wine Corner da José Maria da Fonseca. Assim, vem para a mesa, como entradas para partilhar, um foie gras com pera e cebola caramelizadas, folhas e rebentos em vinagrete de moscatel, depois um húmus de cenoura algarvia, cenouras baby assadas, beterraba, queijo de cabra, funcho e papadums e ainda um ensopado de pata-roxa, peixe que é obrigatório, comento, na caldeirada à setubalense e que aqui surge numa condição diferente, criação do Luís Barradas, chef com quem já conversei para um destes brunches (dessa vez almoço) no DN de sábado.
O tema dos vinhos do Novo Mundo leva a conversa para o torna-viagem, pois há uns bons anos tinha estado aqui à conversa com outro membro da família Soares Franco, António Maria, responsável pelo marketing, sobre a versão moderna dessas viagens no século XIX (recordar que a José Maria da Fonseca foi fundada em 1834) em que os barris de moscatel eram levados nos navios para venda à consignação e alguns acabavam por voltar a Portugal depois de irem tão longe como o Brasil. "Agora temos barris na Sagres para uma segunda volta ao mundo, já não pelo Suez mas pelo cabo da Boa Esperança, uma viagem que coincidia com os 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães mas que a pandemia obrigou a atrasar", diz Domingos.
Fico a saber que já no século XIX se tinha percebido, ao abrir os barris torna-viagem, que o moscatel tinha melhorado. Algo químico, ou mágico, acontece quando o vinho atravessa o equador e vai levando com as vagas. "Mas não se encontra vestígios de sal no moscatel", adverte o enólogo, que conta já ter feito a experiência, com o acordo da Marinha, de fazer transportar uns barris a estibordo e outros a bombordo da Sagres para ver se fazia diferença, mas não. Em compensação, umas garrafas de moscatel de Setúbal são servidas pelo comandante sempre que a paragem num porto se acompanha de uma receção. Não é a única ocasião em que os vinhos da José Maria da Fonseca ajudam a representar Portugal, alerta-me Sofia: "Muitos embaixadores antes de partir vêm cá encomendar os vinhos que depois vão servir aos convidados no 10 de Junho."
Um deles agora deverá ser a outra novidade DSF Coleção Privada, o Sole, do latim Sol. Explica Domingos: "Experimentei há 21 anos juntar 70% de Armagnac a 30% de Cognac e usei essa aguardente para parar uma fermentação de moscatel. Agora lembrei-me disso e pedi para procurarem. Lá o descobriram e fiz este one shot".
Bochecha de vitela em Periquita, puré de batata Ratte e ragu de cenoura acaba por ser o prato principal, e Sofia, a rir-se para o tio, admite que a harmonização com o Malbec é perfeita. Numa empresa que se orgulha de ser familiar, em que vários membros trabalham aqui em Azeitão (António Maria é irmão de Sofia, filhos de António - irmão de Domingos. Domingos tem cinco filhos, entre eles Francisco, que também está na equipa de gestão), não resisto a pedir uma memória infantil da relação com o vinho: "O meu pai deixava-me molhar os lábios no vinho, com 7 ou 8 anos. Não era tabu nenhum. O meu tio também nos deixava a mim e ao meu irmão experimentar os vinhos. Na altura era tudo vinhos doces. E havia o quinado, que era um vinho que se chamava assim porque tinha quinino acrescentado e era dado às crianças por causa das doenças. O vinho fazia parte do dia-a-dia." Entusiasmado, Domingos acrescenta: "O vinho nasceu dentro de mim. Via a vindima, aparecia por aqui. Nunca fui obrigado, é algo que conscientemente estava cá dentro e de alguma forma queria saltar cá para fora... e saltou. Faço aquilo que sempre fiz porque sou irreverente e exerço a profissão que sempre quis exercer. Às vezes com pensamentos errados. Ou seja, lembro-me quando comecei a trabalhar de me dizerem que aos 65 ia saber tudo e agora que estou nos 65 posso dizer que só sei que nada sei, até porque as técnicas evoluem a grande velocidade e é impossível estar a par de tudo o que se passa por este mundo fora e temos de nos focar em áreas específicas dentro deste campo."
Não pensando na reforma convencional (dá uma gargalhada só de pensar na ideia), Domingos conta, enquanto nos regalamos com arroz-doce de leite de ovelha e manjar celeste, que resolvido o problema de saúde tem vontade de dedicar mais tempo aos pássaros que tem na quinta de Camarate. E não são alguns pássaros, mas sim uma coleção imensa de espécies, que vivem à vontade num enorme aviário construído por vontade de Domingos, aves de todo o mundo, tantas que os filhos lhe dizem a brincar que no dia das partilhas será a primeira coisa a ser despachada. "Também tenho as minhas ovelhas, umas vinte e tal agora. Não se esqueça de que já fui produtor de queijo de Azeitão, para algumas coisas há de servir o curso de fermentador" e segue-se mais uma gargalhada.
Brindemos, pois, à genialidade irreverente de Domingos Soares Franco, o enólogo por trás da sigla DSF que tantas vezes lemos no rótulo da garrafa à nossa frente.