A outra "Romaria de Portugal"

Concertos cheios, gente a circular por todo o lado, monumentos e jardins transformados em palcos. Foi assim o Zigurfest, que ontem terminou em Lamego, uma cidade do interior onde o alternativo consegue ser bastante popular
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Eram bastantes estranhos, os sons que naquele fim de tarde ecoavam pelo Largo da Cisterna, na zona antiga de Lamego. Pelo menos para Guedes Firmino, acordado da sesta ao som dos sinos, roncas e chifres que o duo Zarabatana junta às notas improvisadas saídas de um trompete e de um contrabaixo. Firmino, 80 anos, veio para rua como estava, de calções e camisola interior de alças - daquelas à antiga - e por ali ficou, com mais uns vizinhos que entretanto se lhe tinham juntado. De uma varanda fronteira ao largo, surge mais um ancião. Espreita, em tronco nu, cá para baixo e volta a recolher-se, regressando, pouco depois, com um tablet, com o qual grava o inusitado espetáculo que lhe acontece à porta, com dois tipos de máscara a tocarem "uma música esquisita", como a classifica Firmino, logo corrigido pela mulher, Prazeres, de 77 anos: "Esquisita não, moderna, nós é que já somos velhos para a percebermos". Mas percebendo-a ou não, gostam que "a festa" ali chegue, ao bairro histórico do Castelo, uma das zonas mais bonitas de Lamego, mas que segundo os moradores, continua a ser uma espécie de "filho enjeitado" da cidade. "Já moramos aqui há 54 anos e é a primeira vez que a festa aqui vem", lamenta-se Prazeres. A festa mencionado por Prazeres não é propriamente o Zigurfest, que durante quatro dias espalhou mais de duas dezenas de concertos de música alternativa um pouco por toda a cidade, mas sim as Festas de Nossa Senhoras do Remédios, também conhecidas como a "Romaria de Portugal", que por estes dias também se realizam na cidade e nas quais o festival está integrado. "O Zigurfest acaba por funcionar como o outro lado dessa romaria, porque já se tornou para muitos lamecenses, especialmente para um nova geração que teve de ir estudar ou trabalhar para fora, também ele uma tradição e um motivo de regresso a casa por alguns dias", refere Afonso Lima, o diretor executivo do festival.

Pelas ruas do Castelo e à parte dos moradores e de um outro "raro turista" que por ali passe, "quase nada acontece". Quem o diz é Joel, que "cerca de três anos" abriu com a mulher, Rafaela, o bar Casa do Castelo, o único estabelecimento existente nesta zona da cidade, onde também são servidos petiscos e refeições ligeiras. Por estes dias não têm mãos a medir, pois é no castelo, em locais como o Largo da Cisterna, o Núcleo Arqueológico da Porta dos Figos ou no anfiteatro panorâmico junto à muralha que têm lugar os primeiros concertos do dia, fazendo da Casa do Castelo uma espécie de bar oficial do festival. "Temos os nossos clientes habituais e é com eles que nos governamos durante o ano, mas o festival vir até aqui é muito positivo, não só pelo que vendemos, mas especialmente para vermos e estarmos com pessoas diferentes do habitual, porque no dia-a-da não acontece muita coisa por aqui", diz Joel, interrompendo mais uma vez a conversa para ir ajudar a mulher a servir cervejas, pois por esta altura já a fila se prolonga rua fora. "O ano passado tivemos lá uma barraca, junto ao festival, mas acho que este ano a organização esqueceu-se de nos convidar", atira Rafaela, esclarecendo de imediato qualquer crítica que pudesse ser subentendida nas suas palavras: "Eles são poucos e têm muito com que se preocupar, além disso os concertos ficam mesmo aqui ao lado e até é bom que as pessoas tenham de se deslocar até aqui, sempre ficam a conhecer um bocadinho melhor esta parte da cidade".

E "é precisamente esse um dos principais objetivos do festival", sublinha Afonso Lima, "dar a conhecer a cidade", tanto aos locais como aos visitantes, "à luz de um programa desafiador, que permite observá-la sob um novo prisma". Por isso a decisão, tomada há duas edições, de multiplicar os concertos por diversos locais de Lamego, alguns deles bastante fora do comum, como a Sala Grão Vasco do Museu de Lamego, onde atuou Dullmea. Apesar da estranheza da proposta (apresentou um espetáculo apenas de voz, com a mesma a ser manipulada em tempo real por diversa maquinaria), a artista conseguiu lotar por completo o espaço, atraindo até lá muita gente que, à partida, não parecia ser o público-alvo do festival. Essa é aliás uma das grandes vitórias do Zigurfest, um festival organizado por um grupo de amigos da terra, também eles hoje na sua maioria emigrados em Lisboa ou no Porto, que ano após ano prova que o alternativo também consegue ser popular, com concertos cheios, gente a circular por todo o lado e monumentos e jardins transformados em palcos. E tudo isto numa cidade do interior, onde, ao mesmo tempo, também acontecem umas festas populares, com a presença de alguns dos maiores nomes da música nacional. Como aconteceu na sexta, com um concerto dos Amor Electro, mas que não impediu, na mesma altura, o rap kitsch de DB ou o rock avant-garde dos Nu de lotar por completo o vizinho Teatro Ribeiro Conceição. Depois, tudo se juntou, quem vinha de um lado e quem vinha do outro, na Rua da Olaria, enchendo por completo a rua dos bares de Lamego, onde o Zigurfest se transformou num arraial, prolongado noite fora ao som de Vaiapraia e as Rainhas do Baile, Ângela Polícia e Mutual. A maioria dos presentes até podia nem fazer ideia quem eram os artistas, mas toda a gente se divertiu e muitos até gostaram. Só por isso já vale a pena fazer um festival assim,

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