A operação nó cego
A constituição de mais dois arguidos e o aparecimento de mais um interrogatório judicial - que, com certeza, apenas surgiu fruto de uma investigação jornalística apuradíssima e que não foi fornecido pelo Ministério Público nem por ninguém ligado às autoridades -, a 15 dias do prazo para a formulação da acusação, faz levantar a suspeita de que ainda não é desta que vamos saber de que são acusados as dezenas de arguidos da Operação Marquês e que provas há contra eles.
Isto de cada vez que está a chegar o prazo para se fazer a acusação aparecer escarrapachada num jornal uma peça processual ou serem constituídos mais arguidos é, como diria Ricardo Salgado, uma coincidência do diabo. E, claro, é preciso mais tempo, isso sim já coisa bem humana.
Ninguém negará a complexidade do processo e a existência de indícios de atividades, pelo menos, estranhas por parte de alguns arguidos da Operação Marques e que, claro, merecem ser investigados. Mas o que hoje já é evidente é a forma pouco cuidada como está a ser conduzida a investigação ou, no mínimo, cresce a sensação de que a estratégia utilizada, a criação de um megaprocesso, dificilmente atingirá o resultados pretendidos: a condenação de eventuais culpados de forma inequívoca. E deixemos agora de parte a evidente sensação de que se anda de caso em caso - Lena, Vale do Lobo, agora PT, como já se tinha passado por Freeport e outros que tais - a ver se se encontram provas para convicções, em vez de se gerarem convicções através de provas. Se a qualificação de pouco cuidada é uma forma demasiado simpática para definir autênticos atentados às garantias de defesa dos cidadãos, à defesa do bom nome e ao sagrado princípio da não inversão do ónus da prova; o megaprocesso tornou-se um novelo que, em vez de se estar a desenrolar, está cada vez mais emaranhado e cheio de nós cegos.
Já neste espaço escrevi várias vezes sobre o que tem sido a vergonha de uma investigação feita em colaboração com tabloides, com um desprezo total pelo segredo de justiça, selecionando as informações que saem para fazer criar uma convicção de culpa de vários arguidos.
Não sendo suficientes as autênticas poucas vergonhas e as demonstrações de incompetência das autoridades judiciais, parece claro que há uma vontade de alguns protagonistas deste processo quererem aparecer como espécies de Messias, uns homens escolhidos que não vão deixar pedra sobre pedra. O contrário do que deve ser um magistrado.
Cada vez parece mais claro que os procuradores e o juiz das liberdades quiseram juntar uma quantidade significativa daqueles que acham que têm indícios de corrupção - ou crimes aparentados - e casaram tudo.
Em vez de apontarem a um caso de cada vez, decidiram criar um caso gigantesco que parece ter crescido de uma forma que agora já não conseguem dominar. Se têm provas de que Sócrates foi corrompido pela empresa Lena ou pelo Vale do Lobo ou por outra empresa qualquer, porque não acusá-lo disso? Isso evitaria ser acusado de outro ato de corrupção qualquer? Claro que não. E o mesmo se pode dizer sobre outros arguidos do processo.
Os investigadores, querendo ou não, ajudaram, e muito, a gerar a convicção de que todo o sistema está podre. Até pode ser que tenham razão, aliás há demasiados indícios disso mesmo: ministros a mentir despudoradamente, BPN, Bes e tudo o que rodeia a banca, o descalabro da PT, um ex-primeiro-ministro preso e faça o leitor o favor de ir por aí fora. A conclusão de que o país está profundamente apodrecido não é, de todo, injustificada. Mas a questão é a forma como o poder judicial ajuda a resolver a questão e não parece que estejam a atuar de forma a ajudar a resolver o problema.
Há já uma realidade indestrutível: nenhuma falta de acusação, nenhuma absolvição em tribunal desfará a convicção popular de que não há um único inocente em toda esta história. Mais: se não houver acusados ou culpados estará fixada a doutrina de que a lei apenas serve para proteger os ricos e poderosos. Se houver, pouco importa se a acusação for pouco fundamentada ou mesmo uma eventual condenação duvidosa.
Chegamos a um patamar em que as pessoas que acreditam mesmo no Estado de direito - e nas garantias processuais que este impõe mesmo a quem é suspeito de crimes - rezam a todos os santinhos para que as provas contra todos os arguidos sejam irrefutáveis, cristalinas. No limite, que sejam pelo menos credíveis. É que se o não forem, e não houver acusações ou condenações, as consequências para a comunidade em geral serão terríveis. A dimensão do estrago será verdadeiramente trágica. E - por tudo o que se disse atrás - o estrago foi feito pelas autoridades judiciais.
Os responsáveis pela Operação Marquês, com a aparente incompetência (rezo a todos os santos para que seja mesmo só aparência), a sua vontade de protagonismo e a tentação de aparecer como heróis populares já contribuíram de forma decisiva para a descredibilização do sistema de justiça. A confiança no edifício judicial é sempre posta em causa quando os cidadãos só estão dispostos a respeitar uma decisão. Lá está, desta forma não se resolve nenhuma crise do sistema, pelo contrário.
A corrupção é o cancro da democracia e sim, há sinais de que ela grassou no nosso país, mas não se combate usando armas não democráticas e muito menos com candidatos a Robin Hoods.