A muito esperada autobiografia de John le Carré, o caçador de leitores
Raras vezes o prefácio de um livro explica o título de uma forma tão explícita como esta autobiografia do escritor John le Carré. O Túnel de Pombos é o nome dado a estas memórias e porquê? Trata-se de uma recordação do autor da altura em que ia com o pai até Monte Carlo para "as farras de jogo" e perto do casino ficava um clube desportivo com uma carreira de tiro, de onde saíam uns túneis em direção ao mar. Por eles voavam uns pombos, contra os quais "cavalheiros desportistas bem almoçados" disparavam. O que mais curiosidade despertava ao jovem Le Carré era que as aves que sobreviviam voltavam ao local da matança como se este fosse um refúgio.
Essa situação, diz, sempre o "assombrou" e até agora não a compreendeu. Ora, John le Carré não é um homem ignorante, pelo contrário, e decerto percebeu há muito a psicologia dos pombos, que é comparável à dos seus leitores, pois voltam sempre ao lugar do crime: os seus romances de espionagem.
E fazem-no desde que com um dos seus primeiros thrillers do tempo da Guerra Fria, O Espião Que Veio do Frio, armadilhou para sempre o interesse dos leitores - como se fossem pombos -, e criou a mania de o lerem romance após romance. Como atrás do escritor existe um homem, já há muito se esperava pelas suas memórias, em que se revelassem pormenores reais e surreais, sucessos e fracassos, bem como os bastidores de uma vida agitada que lhe permitiram escrever tantas páginas de suspense e de explicação do comportamento da mente humana perante o medo e a coragem em cenários de grandes conflitos. É isso que John le Carré vai fazendo ao longo de O Túnel de Pombos, a sua aguardada autobiografia, que saiu há poucas semanas em língua inglesa e que a D. Quixote faz chegar às livrarias daqui a poucos dias.
[artigo:5421136]
O tom do relato combina o confessional e o descritivo dessa longa vida de um rapaz nascido David John Moore Cornwell, a 19 de outubro de 1931, e que adotou o pseudónimo que o tornou conhecido para dar nome ao autor de várias dezenas de livros de espionagem, entre outros temas que praticou. Nada que lhe fosse difícil visto que Cornwell foi nas décadas de 1950 e 60 um dos funcionários dos serviços secretos britânicos, tendo apenas deixado o MI6 para se dedicar aos seus best-sellers mundiais. As duas primeiras tentativas não tiveram o sucesso da terceira, o já referido O Espião Que Veio do Frio, que o retirou da sombra e o pôs no terreno da literatura do género. Um romance de centena e meia de páginas que até hoje é relido frequentemente e que lançava as bases de uma carreira que continuou a surpreender e o integrou como um dos 50 principais autores ingleses do pós-guerra. O seu principal sucesso deve muito a um dos mais infames momentos da espionagem britânica, a descoberta do agente duplo Kim Philby, uma toupeira que gerou o caos nas fileiras dos agentes secretos e deu início a uma guerra fria dentro da verdadeira Guerra Fria.
Quanto a O Túnel dos Pombos, dificilmente se pode dizer que algum leitor sairá dececionado destas quase quatrocentas páginas. Tal como nos seus livros, John le Carré encena todos os relatos como se fossem uma narrativa literária. Desde a explicação do título na primeira página até à descrição da abertura de um cofre abandonado nas instalações dos serviços secretos em mudança. Diz: "Quando eu era um jovem e despreocupado espião, era natural que acreditasse que os segredos mais escaldantes da nação estivessem guardados num cofre-forte Chubb verde." Ao revelar o que está nesse caixote metálico com a tinta estalada de tão velho, Le Carré mostra como sabe construir um romance excitante e que prende a atenção, pois o resultado que se observa quando a porta do cofre é aberta é ínfimo quando comparado com o esforço narrativo para chegar a esse ponto. Mas o leitor está enfeitiçado e não fica desgostoso.
Pelo meio, as memórias contêm centenas de histórias de um espião/escritor que teve uma vida de filme, ou, mais propriamente, de autor de romances de espionagem.