A morte do poeta, segundo Jean Cocteau

Começa na quinta-feira a terceira parte do ciclo de cinema francês "Os Grandes Mestres 1930-1960", que decorre no Espaço Nimas, em Lisboa, até início de outubro. De entre o magnífico lote, destacamos O Testamento de Orfeu
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Poeta, romancista, pintor, encenador, cineasta e tanto mais. Jean Cocteau (1889-1963) é um dos singularíssimos autores incluídos na seleção gourmet de cinema francês que tem feito as delícias deste verão na sala escura. Encaixado no terceiro capítulo do ciclo "Os Grandes Mestres 1930-1960", o seu nome surge como sinónimo de uma arte que desafia a linguagem comum: vive na fronteira entre o modernismo e as referências clássicas, com uns pozinhos de surrealismo. O Testamento de Orfeu (1960) - a sua última longa-metragem, realizada dez anos depois de Orfeu - é então o título que aqui proporciona o encontro imediato com aquele que se apresenta diante da câmara como poeta que é, na mais comovente transparência. O homem que viaja através do tempo, aparecendo e desaparecendo, morrendo e ressuscitando, numa livre revisitação da sua obra e respetivas personagens.

Trata-se de um devaneio autobiográfico e, consequentemente, do filme íntimo entre os filmes íntimos de Cocteau, porque a ele ofereceu diretamente o rosto enquanto porta de entrada para as reflexões da alma. Ou melhor, as reflexões do poeta. Desde os peculiares créditos de abertura desenhados a giz, ao final coerente com a sua voz poética, o cineasta cultiva a pura experiência das formas, através de muitos "truques de ilusionismo", dir-se-ia, ao estilo de Méliès. Leva-nos de segmento em segmento, a apreciar uma coreografia de máscaras (de cavalo, de caveira, os olhos desenhados...), que introduzem um universo extremamente plástico e físico, entre a matéria da flor e a dos corpos, na busca do invisível.

A propósito, recordamos o seu livro Visão Invisível (editado em português pela Sistema Solar) o que escreveu sobre a relação entre o cinema e a escultura: "O cinematógrafo destronou a escultura realista. As suas personagens de mármore, as suas grandes caras pálidas, os seus volumes com sombras, com iluminações soberbas, toda essa humanidade abstrata, essa desumanidade silenciosa, substituem o que outrora era pedido pelo olhar às estátuas." Uma verdade que encontramos validada nos seus filmes, seja na estátua humana de O Sangue de Um Poeta (1932), nos célebres braços-candelabro do castelo do Monstro - esse detalhe do soberbo design de produção de A Bela e o Monstro (1946) -, seja no modo como filma e ilumina os rostos em O Testamento de Orfeu.

Neste último, que agora pode ser visto ou revisto, Cocteau entregou-se à espontaneidade da sua energia criativa, dentro da mitologia que definiu uma obra inteira, elaborando uma despedida do cinema onde não faltam amigos: vê-se Pablo Picasso numa cena, Jean Marais (o seu ator e amante predileto) noutra, a criança Jean-Pierre Léaud (que acabava de fazer Os Quatrocentos Golpes, de Truffaut) logo no princípio do filme e, entre outros, María Casares e Edouard Dermit. Todos eles personagens da vida do poeta, com um pé na ficção e outro na realidade.

Na companhia de Jean Cocteau, no que à terceira parte do ciclo diz respeito, deparamo-nos ainda com uma raridade chamada O Meu Pai Tinha Razão (1936), de Sacha Guitry - cineasta que importa muito redescobrir -; O Último Golpe (1954), segundo título programado de Jacques Becker; e O Carteirista (1959), de Robert Bresson. Este último chegou a ter Cocteau como colaborador no argumento de As Damas do Bosque de Bolonha (1945), o segundo filme de María Casares, que depois seria a Princesa da Morte em Orfeu e O Testamento de Orfeu...

No sábado, dia 25 de agosto, a sessão das 19:45 de O Testamento de Orfeu será apresentada pela realizadora Salomé Lamas.

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