A mítica biografia de Fernando Pessoa por Richard Zenith materializa-se em língua portuguesa
A editora Lúcia Pinho e Melo não escondeu a emoção, na passada quinta-feira, quando revelou pela primeira vez aos jornalistas a biografia definitiva de um dos maiores especialistas em Fernando Pessoa, Richard Zenith. Para a responsável da Quetzal, aquele era "um grande momento da vida editorial portuguesa" e com razão, como acrescentou: tratava-se de um volume que irá "mudar as nossas vidas" devido ao profundo estudo que oferece e à investigação de que resulta. Afinal, há mais de sete décadas que ninguém se abalançava a produzir uma narrativa tão completa sobre o poeta como fez, disse, o autor "norte-americano-português", que vive em Portugal há mais de três décadas e que, entretanto, foi-se tornando um dos principais conhecedores da obra de Pessoa, tem publicado inúmeros livros sobre várias facetas do poeta, além de ter traduzido para a língua inglesa o Livro do Desassossego.
A biografia tem um título diferente para Portugal, Pessoa - Uma Biografia, e não o da versão americana, Pessoa: An Experimental Life, e a tradução aumenta-lhe cem páginas. A crítica internacional apreciou a obra e os elogios aclamaram-na como sendo "uma revelação" e "uma obra-prima da literatura biográfica", respetivamente no Sunday Times e no The New Statesman. Já o The New York Times sintetizou assim: "Zenith, um americano que reside em Lisboa, trouxe para a obra o conhecimento académico obtido em mais de 30 anos de edições, traduções e estudos sobre o trabalho do biografado. Pessoa teve a sorte de encontrar um "amigo póstumo"".
Antes de Richard Zenith, já Fernando Pessoa tivera um outro "amigo póstumo" - que foi seu contemporâneo -, o autor da biografia já referida, João Gaspar Simões, a quem o investigado agradece a redação de um primeiro livro, designadamente por ter tido "o mérito de perceber que Pessoa merecia uma biografia", mesmo que uma segunda edição tenha demorado a ser publicada. Para Zenith, as diferenças entre estas biografias são óbvias: "As exigências eram diferentes nesse tempo, não havia o mesmo cuidado editorial de hoje, não se citavam as fontes, mas recolheu testemunhos fundamentais para o futuro." Questionado sobre o lugar reservado a partir de agora à anterior biografia, Richard Zenith não fez futurologia: "Não sei onde vai ficar a biografia de Gaspar Simões. É, no entanto, pioneira e importantíssima, mesmo que setenta e alguns anos depois o conhecimento sobre o poeta tenha sido muito alargado."
Esse espólio com mais de 25 mil papéis só começou a ser consultado posteriormente, de que resultaram inicialmente a edição de mais de trezentos poemas, divididos em quatro volumes: os de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e do próprio Pessoa. O "vasto e requintado corpo de trabalhos" permite a Zenith afirmar no prólogo: "É possível dizer que os quatro maiores poetas portugueses do século XX foram Fernando Pessoa".
Nesta introdução, Zenith considera que "mais surpreendentes do que os copiosos textos exumados da arca eram as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado". Essa longa lista está enunciada nas primeiras oito páginas desta biografia, numa pormenorizada dramatis personae em que se "biografam" esses autores fictícios criados por Pessoa desde muito jovem e ao longo da vida.
Na apresentação desta biografia, o Prémio Pessoa de 2012 recordou o seu percurso e as razões que o fizeram estabelecer-se em Portugal em 1987: o estudo e tradução das canções medievais ibéricas para uma antologia da poesia galaico-portuguesa. Formado em Letras pela Universidade da Virgínia, conhece durante a estada no Brasil, e depois em Lisboa, a obra de Pessoa através das edições da Ática, como foi o caso do Livro do Desassossego. Atraído por esta obra, decide traduzi-la na íntegra para o inglês, sendo a biografia que agora lança um resultado direto desse início: "Todo esse trabalho que reunia textos biográficos e inéditos mais não era do que uma antecipação desta biografia". Que, mais tarde, lhe era solicitada pelo seu agente literário nova-iorquino: "Achei que ia demorar uns três anos a escrever as 160 mil palavras encomendadas". Esse total, milhares de vezes multiplicado, só chegou aos leitores no ano passado: "Nunca imaginei que me levasse tantos anos." Diga-se que a prometida biografia de Richard Zenith sobre Fernando Pessoa já era um mito do meio literário português e muitos consideravam que nunca viria a ser publicada.
O principal problema para a escrita foi, explica Zenith, o facto de nunca ter feito uma biografia: "A narrativa exige muito trabalho e como jamais escrevera uma biografia foi necessária uma aprendizagem." Primeiro, "reunir os factos", depois "relacionar as várias facetas", em seguida "revelar quem era Pessoa", ou seja, "era preciso contar uma história e não o fazer sob a forma de um romance".
Daí que numa primeira fase tenha tentado escrever na primeira pessoa: "Como uma autobiografia, como se Pessoa estivesse a lembrar-se da sua vida." Com o andamento, logo concluiu que não seria a melhor maneira ou até possível: "Não fui capaz de avançar dessa forma!". Só ao encontrar a versão que agora oferece aos leitores é que seguiu em frente: "E assim foi crescendo a biografia, ficando muito além do que imaginava, o que fez com que tivesse sido obrigado a cortar muito do texto final."
Chegado ao fim, Richard Zenith considera que ficou "a conhecer melhor Fernando Pessoa". Que tipo de relação foi criando com o biografado foi uma das questões levantadas: "A minha relação transformou-se numa espécie de psicanalista. O livro não é psicanálise, aviso, mas, [tal]como o psicanalista faz, ouvi-o para o tentar compreender." Foi o suficiente? "Não pretendo ter percebido Pessoa por inteiro, porque nem a mim me percebo. O que tentei foi pôr lá todos os elementos que tinha de modo a que os leitores o percebam. Em poucas palavras: foi uma convivência a dois", garante.
Ao fim de 1183 páginas ainda há sombras na vida de Pessoa por esclarecer ou fica o retrato inteiro? "Fernando Pessoa será sempre um mistério. Da convivência com ele, tentei entender como ele se sentiria no dia a dia. Apesar do que se pensa, o poeta era um ser social, a quem não faltavam as tertúlias nos cafés ou sempre um sentido de humor. No entanto, desde criança que era tímido e é na escrita que se revela, e esse é o lugar onde há muito Pessoa", refere.
Quanto às dificuldades para elaborar esta biografia não deixa de revelar que "foram muitas". Enuncia: "Principalmente devido ao seu interesse nos assuntos espirituais - no meu caso não me sinto atraído pelo oculto -, mas essa é a praia dele. E nessa zona ainda existem muitos apontamentos inéditos. Não são textos completos e pouco sentido fazem para o leitor, contudo interessam bastante ao investigador. Nessa grande série de apontamentos tentei perceber as razões do seu interesse, no que acreditava ou não. Ele interessava-se pela religião e o que eu queria era ter a sensação do que representavam realmente esses assuntos difíceis. Não é fácil, até porque Pessoa nunca está quieto e passa constantemente de uma coisa para outra." Uma ideia que está logo explicitada na introdução: "Pessoa foi essencialmente um produto do seu tempo e da sua geografia. Interessado no mundo visível que habitava, Pessoa sentia-se ainda mais atraído pela realidade invisível."
No que respeita às fontes para esta biografia, Zenith destaca a própria obra: "É a parte mais importante, porque além de ser muito autobiográfica, os seus sentimentos surgem. É preciso perceber que ele está sempre a mudar, aquilo que se sabe: é um fingidor. Não fica nenhuma dúvida de que Pessoa usa a sua vida em prol da obra. O espólio também foi importante, desde o que se conhece do seu quotidiano, o conteúdo da correspondência - mesmo das muitas cartas que não envia, e são bastantes -, dos seus encontros com outras pessoas, e das memórias de Durban."
No caso desta cidade sul-africana, Zenith teve acesso a muitas cartas trocadas com a mãe do poeta: "Tive acesso a cartas inéditas trocadas entre a mãe e o filho. Ela enviava uma carta semanal, das quais nem todas ficaram, e fê-lo durante muitos anos. Nem tudo o que lá está é interessante, mas existem pormenores importantes. E há as que tratam das gripes - ele era muito suscetível a gripes - e foi infetado pela gripe espanhola, não de uma forma fatal, e ultrapassou a doença."
Existem ainda outras fontes: "Artigos e várias entrevistas então publicadas, bem como depoimentos de quem, não o tendo conhecido diretamente, não deixava de ter informações muito curiosas de conhecidos de ambos." A que se podem acrescentar muitos outros testemunhos de contemporâneos, como foi o caso de Almada Negreiros, entre outros.
Richard Zenith também esclareceu a ligação do poeta ao tio Cunha: "Já a familiar Manuela Nogueira tinha publicado duas cartas entre eles e entendi melhor a relação diferente que existiu. Interessante é que João Gaspar Simões dava uma ideia de que o tio era analfabeto e descobri que não era assim. Tanto que Pessoa e o tio brincavam a criar personagens.
Quanto a novidades entre esta biografia e a anterior, de 1950, Richard Zenith garante que não faltam: "Contém muitas novas informações sobre a infância e a juventude do poeta - não precisamos de ser freudianos para valorizar essa época da vida - e temos um outro retrato dessa parte da sua vida." Além do esforço de contextualização, pergunta-se se existem também outras interpretações, sobre a sexualidade, por exemplo. Garante: "Há novas informações sobre isso e muito mais".
Pessoa - Uma Biografia
Richard Zenith
Editora Quetzal
1183 páginas