A ministra que a pandemia destacou caiu com estrondo perante o caos nas Urgências

Marta Temido saiu de cena como entrou, em guerra aberta com os profissionais do setor, numa passagem pelo Ministério da Saúde marcada inevitavelmente pela resposta à pandemia de covid-19. Chegou a ser a ministra mais popular e até lançada como eventual sucessora de António Costa na liderança do PS. Mas assim que a pandemia deixou de dominar a agenda, Temido afundou-se nas fragilidades do SNS.
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Um ano é muito tempo, sobram casos históricos para o demonstrar. E Marta Temido pode juntar-se agora ao rol de exemplos que o sustentam. Senão, recuemos uma volta ao Sol. No final de agosto de 2021, Marta Temido era estrela aclamada no Congresso do PS, onde António Costa lhe entregava orgulhosamente o cartão de militante do partido após quase ano e meio de resiliência política face à pandemia de covid-19. Eram dias em que a popularidade da ministra da Saúde a levava a emergir até, em algumas sondagens publicadas, como favorita à sucessão de Costa na liderança do PS, hipótese acarinhada até pelo próprio secretário-geral e primeiro-ministro.

Um ano depois, no entanto, tudo mudou. Temido passou a "tremido" nos corredores políticos, durante um verão de constante caos nas Urgências hospitalares do Serviço Nacional de Saúde, até cair com estrondo na madrugada desta terça-feira, com um comunicado enviado às redações às 01.18 horas que colocou um ponto final a 1414 dias atribulados como ministra da Saúde. Os quais já se tinham iniciado de forma pouco pacífica, quer no processo de substituição, quer nas guerras assumidas desde logo.

Curiosamente, foi a pandemia global de covid-19 a dar a Marta Temido os dias de maior popularidade e até um raro momento de fragilidade emocional, chorando em público numa cerimónia no Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA). Mas a ministra nunca foi consensual, longe disso, no setor, e a pandemia deixou apenas a marinar os problemas que aguardavam por resolução e que estouraram nas mãos de Temido neste verão.

Em outubro de 2018, a escolha de Marta Temido para suceder a Adalberto Campos Fernandes causou alguma surpresa. Figura com pouca experiência política, sucedeu a um peso pesado do setor, afastado do cargo num fim de semana imediatamente após a aprovação do Orçamento do Estado. Temido chegara a presidente do conselho diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em 2016, mas deixou o cargo alegadamente em desencontro com Campos Fernandes, um ano antes de lhe suceder no ministério.

O reinado de Marta Temido começou por mostrar uma faceta litigante face aos enfermeiros que marcaram greve às cirurgias programadas. Em entrevista ao DN e TSF, a 2 de novembro de 2018, com poucos dias no cargo, Temido recusava negociar com esses enfermeiros em greve, pois isso seria "privilegiar o criminoso, o infrator", declarações que a levariam posteriormente a fazer um pedido de desculpas, prática a que recorreria mais algumas vezes em quase quatro anos. Decretou uma requisição civil dos enfermeiros e pediu uma investigação à Ordem dos Enfermeiros, liderada por Ana Rita Cavaco.

Outro dossier quente nos primeiros dias de Marta Temido no ministério rebentou em dezembro de 2018, assinalando uma quase sempre difícil coabitação com o setor privado. A ministra anunciou o fim da parceria público-privada (PPP) no Hospital de Braga, alegando "indisponibilidade definitiva do parceiro privado [Grupo Mello] para prosseguir a concessão", o que a José de Mello Saúde desmentiu. Certo é que a PPP não foi renovada.

Março de 2020 trouxe a Marta Temido o mais inesperado dos desafios: uma pandemia devastadora a nível global. Juntamente com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, Marta Temido passou a ser o rosto que diariamente se mostrava aos portugueses na luta diária contra a covid-19. Mesmo com uma atuação longe de ser considerada consensual, a resposta portuguesa à pandemia e o sucesso do plano de vacinação (liderado pelo vice-almirante Gouveia e Melo) catapultaram Temido para o topo da popularidade no governo de António Costa. E além da resiliência mostraram também uma faceta mais emocional da ministra, que, no INSA, em dezembro de 2020, chorou ao agradecer o empenho de todos os que estavam na linha da frente durante a pandemia.

Foi num contexto de popularidade em alta que Marta Temido chegou ao Congresso do PS, em Portimão, no verão passado, para receber de António Costa o cartão de militante do partido. Temido era, então, o rosto que o governo socialista agitava com orgulho e até um nome lançado para a eventual sucessão do secretário-geral do PS. Uma sondagem em setembro passado colocava-a à frente de Fernando Medina e de Pedro Nuno Santos entre as preferências dos portugueses para essa sucessão. "Nunca se sabe", respondeu então, depois de receber o cartão de militante.

Com a pandemia a perder gradualmente espaço na agenda dos portugueses, o capital político de Marta Temido foi-se esfumando e voltou a sobressair a difícil relação com os profissionais do setor. Numa audição parlamentar, em novembro de 2021, desafiada a apontar razões pelas quais os médicos não se fixam no SNS, a ministra sublinhou que "aspetos como a resiliência são tão importantes como as competências técnicas", causando uma onda de choque entre os médicos que a levaram a fazer novo pedido de desculpas, "do fundo do coração".

Não se sensibilizaram os médicos com o pedido de desculpas, nem melhorou a crise dos recursos humanos no SNS, que agudizou neste verão, após dois anos sob disfarce na resposta extraordinária à pandemia. Com as escusas de responsabilidade de médicos e enfermeiros a multiplicarem-se e as dificuldades dos hospitais em organizarem escalas completas de especialistas, o encerramento ou funcionamento condicionado dos Serviços de Urgência, especialmente de Obstetrícia e de Blocos de Partos, tem sido nota comum desde junho. Nem a criação de uma Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos fez desaparecer as dificuldades. Assim como a aprovação de um novo Estatuto do SNS em julho, não calou as críticas no setor. A notícia da morte de uma grávida, conhecida na segunda-feira, depois de ser transferida de hospitais por falta de vagas, terá sido a "linha vermelha" que fez Marta Temido sucumbir ao peso da missão, pouco mais de dois meses depois de garantir que "não desistia de lutar pelo SNS".

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