"A mentira é uma necessidade social"

Luís Fernando Veríssimo não tem o menor jeito para contar anedotas nem para ter tiradas engraçadas. Tem 80 anos, 50 de crónicas. O escritor, jornalista e humorista brasileiro em entrevista ao DN
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Todas as semanas escreve três crónicas: para o jornal Zero Hora de Porto Alegre, para O Estado de S. Paulo, para O Globo, que o agencia e distribui para outras publicações. Esteve em Lisboa para lançar a edição portuguesa de dois livros complementares, As mentiras que os homens contam e As mentiras que as mulheres contam. Mal entendidos, desencontros, maldades, atrapalhações, doenças, crimes, amores, mentiras de todos os géneros. Como sempre, está acompanhado por Lúcia, com quem é casado há 52 anos. Tem uma tosse pesada, está a digerir a chegada aos 80 anos, e se possível ainda mais sintético na conversa do que antes. E no entanto, conta Lúcia, na hora de escrever não há tosse nem tristeza que o afetem. O texto flui com o humor subtil que o caracteriza desde que, há 50 anos, escreveu a primeira crónica. No futebol, explica ele, é "um torcedor discreto", tal como na vida é sobretudo um observador que apanha os pormenores com uma malícia mascarada de desinteresse.

Depois de ler os dois livros, conclui-se que todos mentem em algum momento. Concorda?

Tem razão. Talvez os homens mintam mais do que as mulheres. Quando saiu As mentiras que os homens contam, perguntavam-me quando escrevia as mentiras que as mulheres contam. E eu respondia - olha, vai ser um livro muito grande... E no fim as mentiras das mulheres são menores.

São muito diferentes as mentiras dos homens e as das mulheres, para si?

Os homens mentem principalmente para as mulheres, começando pela mãe, e as mulheres mentem para elas mesmas.

E vivem assim a vida toda, continuam sempre assim, não se modificam?

Não. Uma pessoa começa mentindo, tem que manter a mentira, não pode desmentir-se.

Estes livros são compostos só por crónicas já publicadas ou algumas foram feitas expressamente?

São crónicas publicadas em jornal, nas várias épocas, umas mais antigas, umas mais novas. A editora fez a seleção das crónicas. Depois eu fiz uma revisão.

Ao longo da sua obra este é um tema permanente. Por vezes não são mentiras, são só mal-entendidos ou subentendidos.

Escrevo muito sobre casais, já me chamaram a atenção para isso. Casais se desentendendo, casais brigando. É um tema recorrente no que eu escrevo.

E no entanto tem um casamento muito duradouro.

O meu casamento desmente tudo o que eu digo. Sou casado há 52 anos e corro o perigo de dar certo.

Os seus pais também tiveram um casamento duradouro.

Não sei quantos anos estiveram casados mas foi um bom casamento.

Um casamento para se manter tem de ter pequenos segredos, as pequenas coisas que não se dizem?

A mentira é uma necessidade social, a gente viveria numa sociedade cheia de conflitos se não mentisse um pouco, ou para não magoar o outro, ou para esconder algumas coisas que não precisam de ser reveladas. A mentira é necessária, tanto para os homens como para as mulheres.

O seu casamento e estes livros têm alguma relação?

Nenhuma relação. Escrevo muito sobre sobre casais se desfazendo quando o meu casamento tem durado muito. É pura invenção. São coisas que observo nos outros. Às vezes um facto que ocorreu com outra pessoa é o começo de uma crónica, é a génese e construo em cima daquilo. Um facto que detona uma ficção.

Portanto, é um observador, sobretudo, na relação com as pessoas?

Acho que sim. Como eu falo pouco, ouço mais do que falo.

E observa?

Observo e aproveito.

Na sua escrita usou sempre muito o humor. Hoje essa é uma capacidade muito treinada, mas começou espontaneamente?

Não, porque eu não sou o que chamaria um humorista espontâneo, o que eu faço é mais uma questão de técnica do que de vocação. Não tenho a menor vocação para contar anedotas, para ter tiradas engraçadas, dizer piadas. Mas eu consigo, pela leitura que sempre fiz, fazer esse humor.

Desde jovem começou a fazer jornais humorísticos. Pode não ser um humor espontâneo na fala mas na escrita é uma característica sua.

Sempre tive o gosto pela leitura de humor, principalmente o americano. Sempre tive uma ligação muito forte com a cultura americana e li muitos humoristas americanos. Quando comecei a escrever já estava influenciado por aquele tipo de humor que é um pouco diferente do humor brasileiro - que é mais caricato, mais exagerado - enquanto o humor americano e inglês é mais subtil. O que eu faço é nessa linha.

Viveu em vários países, mas muito do seu tempo de formação foi passado nos Estados Unidos.

Nós fomos para os Estados Unidos quando eu tinha sete anos e ficámos até aos nove. A primeira escola que cursei foi nos Estados Unidos, praticamente alfabetizei-me em inglês. Voltámos para os Estados Unidos de 1953 a 1956, e aí eu cursei o high school. Sempre li muito os americanos e os ingleses.

Isso tornou-o muito diferente da cultura brasileira?

Acho que sim. Também trabalhei muito em televisão, que é uma criação coletiva. Nesse sentido, eu também fiz humor brasileiro, participei nesse tipo de criação.

Viveu em várias cidades, como Paris e Roma. Qual é a sua cidade?

A minha cidade preferida é Paris. Tem o pitoresco, o cultural e ao mesmo tempo é uma cidade que funciona. Os transportes funcionam. Tenho uma grande ligação com a Itália, com Roma, morámos um ano em Nova Iorque também. Mas a minha escolha seria Paris.

E no Brasil?

Porto Alegre. A minha mulher é carioca, casámo-nos no Rio de Janeiro mas eu levei-a para Porto Alegre, vivemos lá. A nossa primeira filha nasceu no Rio, mas os outros dois nasceram em Porto Alegre.

Quando escreve romances, como sabe que a história acabou?

Romance é difícil, na crónica a gente escreve trinta linhas e está acabado, no romance ao fim de 30 linhas faltam muitas mais. Mas fiz essa experiência, teve seis romances publicados, e correu bem.

Até fez uma série que era uma sátira aos detetives dos policiais negros norte-americanos.

Sempre gostei muito de literatura policial. Ultimamente não, mas na adolescência li bastantes. É um exemplo da influência americana no que eu faço. O Ed Mort, que é o nome do meu detetive brasileiro, é uma sátira dos filmes policiais americanos.

Dos filmes e dos livros, leu com certeza o Raymond Chandler...

... claro, e o Dashiell Hammett, essa turma toda.

É uma grande escola de escrita?

Acho que sim. É uma narrativa que precisa de prender a atenção do leitor. Não é fácil. Não se pode perder o leitor nas primeiras páginas. Tem que manter o interesse dele, manter esse conluio.

Nasceu em 1936, o ano em que creio que o seu pai, Érico Veríssimo, escreveu Olhai os Lírios do Campo, o livro que o lançou mais no exterior do Brasil.

Acho que ele escreveu em 1936, sim.

Como se relacionava com a obra do seu pai?

A primeira obra para gente grande que eu li foi um livro do pai chamado Caminhos Cruzados [publicado em 1935]. Li meio escondido, porque não era um livro para criança, tinha cenas fortes, como se dizia antigamente. Sempre acompanhei o trabalho do pai. Por exemplo, no caso de O Continente, [1949], o primeiro volume de O Tempo e o Vento, ele trabalhava na mesa de jantar lá de casa e eu acompanhei as primeiras páginas que escreveu, saídas da máquina de escrever, quentinhas do forno ainda. Sempre o li muito, sempre gostei muito do que ele escrevia. Aprendi com ele a ter um texto informal, não empolado. Ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a escrever sobre a experiência urbana. Nesse sentido também foi uma influência.

Li que a sua irmã se chama Clarissa, o título do primeiro romance dele [1949]. Creio que foi escrito antes de...

O livro foi anterior à pessoa.

Ela é que teve o nome da personagem, não o contrário?

Foi assim mesmo. Ela casou com um americano e continua a viver nos Estados Unidos.

Por que começou a escrever?

Comecei bastante tarde, tinha mais de 30 anos. Antes, trabalhei em publicidade, tentei o comércio e não deu certo, obviamente. Convidaram-me para trabalhar no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e comecei como copy desk. Eventualmente deram-me um espaço assinado no jornal e aí eu descobri que sabia fazer aquilo.

Nunca tinha experimentado?

Tinha feito traduções do inglês para o português e não tinha a menor intenção de ser escritor e muito menos jornalista. E deu certo.

O que queria fazer na vida?

Quando era garoto queria ser aviador, depois pensei em ser arquiteto, sempre gostei muito de arquitetura. E tentei outras coisas.

Chegou a estudar arquitetura?

Não, não me formei em nada, fiz só o secundário americano e depois convenci o meu pai de que não queria estudar. Eu era um péssimo aluno e ele entendeu. Quando comecei a ter um espaço assinado no jornal, escrevia sobre tudo. Sobre futebol, cinema, literatura e às vezes fazia uma crónica mesmo, uma coisa mais lírica, mais pretensiosa. Mas na verdade escrevia sobre tudo. É o que faço até hoje.

Como escolhe o tema de uma crónica?

Às vezes tenho um assunto que está no ar, obrigo-me a comentar, às vezes não tenho assunto nenhum e invento, é pura criação, pura ficção. Depende até de ter dormido bem na noite anterior.

A obrigação de escrever três crónicas todas as semanas implica uma grande disciplina, não pode deixar para amanhã, tem prazos.

A minha musa inspiradora é o prazo, hoje em dia é o prazo de entrega, ter de produzir de qualquer jeito para mandar a matéria para o jornal. O que sair saiu.

A sua relação com Portugal é muito constante.

A primeira vez que vim a Portugal foi em 1959, vim com o meu pai e com a minha mãe, ficámos um mês, o pai fez conferências, primeiro no norte e depois no sul.

Era um Portugal muito diferente?

Era. Era a época de Salazar. Mas depois voltei muitas vezes e gosto muito. Lisboa é uma cidade fantástica, encantadora.

Já escreveu sobre Lisboa?

Tenho um livro de viagens que é só de experiências como viajante, como turista, e tem muita coisa sobre Portugal.

E como é a sua ligação com a língua portuguesa?

São línguas parecidas.

Não é a mesma língua?

No fim é, mas cada uma tem características que a outra não tem.

Nunca escreveu em inglês?

Não, só fiz traduções de inglês para português. Nunca escrevi diretamente em inglês.

Embora seja a segunda língua.

Sim, praticamente alfabetizei-me em inglês. Depois esqueci muita coisa. Hoje leio quase exclusivamente em inglês, mas na hora de escrever, na hora de falar, não vem.

O que lê? Romances, ensaios?

Já tive uma época de ler por prazer, principalmente literatura norte-americana e inglesa. Hoje, infelizmente, não tenho tempo para ler por prazer, leio mais sobre economia, sobre história, crítica literária, mas o romance por prazer não tenho lido quase nada.

E o Brasil neste momento preocupa-o?

Nós estamos vivendo o rescaldo do golpe que deram na Dilma e as coisas não estão bem. Muita corrupção. Confesso que nestas últimas três semanas que passámos em Paris fiz questão de não saber nada sobre o Brasil, não li nada. Fiz uma sabática do Brasil.

Escreve sobre futebol, fez a cobertura de campeonatos do Mundo. O que tem o futebol que faz perder a cabeça a tanta gente?

O futebol é uma paixão de criança que permanece no adulto. Talvez seja a única paixão, o único interesse infantil que continua o mesmo. Uma pessoa envelhece torcendo por uma equipa que já era dela na infância. Tem essa quase pureza de ser uma paixão duradoura. Por isso emociona tanto as pessoas. Eu sou um torcedor discreto.

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