A memória de Romy Schneider na abertura da KINO
Este ano a KINO começa sob o signo de Romy Schneider. 3 Dias em Quiberon, filme de Emily Atef apresentado em competição na última Berlinale e escolhido para fazer amanhã as honras de abertura da mostra, é o grande argumento para essa incursão no mito da atriz austríaca. Interpretada por uma extraordinária Marie Bäumer, em entrega total, Schneider surge aqui como o ser espontâneo, doce e vulnerável que durante três dias de 1981 (meses antes da sua morte) se expôs ao jornalista Michael Jürgs, num convívio e entrevista que a captou entre os tons mesclados da sua vivacidade radiante e de uma tristeza pesada. Procurando o espírito e a luz das famosas fotografias a preto e branco do amigo Robert Lebeck - que inclusive a fotografou nesses dias passados numa estância balnear da Bretanha - o drama de Atef ensaia, com delicadeza, um olhar sobre a mulher que não gostava de ser confundida com a princesa Sissi dos seus primeiros filmes, e que só desejava responder pelo nome de... Romy Schneider.
Parte-se com esta nota melancólica para um programa, organizado pelo Goethe-Institut Portugal, que reúne uma vintena de títulos inéditos e variados nas propostas, entre produções alemãs, austríacas, suíças e luxemburguesas. A exceção à regra acontece com uma produção portuguesa: Sobre Tudo Sobre Nada, documentário de lugares físicos e emocionais escrutinados pela memória íntima do músico Dídio Pestana, sediado em Berlim. A intimidade, na expressão da família, é aliás um dos temas que atravessa a mostra em filmes como Vácuo, de Christine Repond, centrado num casal de meia-idade, Casa de Verão, de Sonja Maria Kröner, e Mil Maneiras de Descrever a Chuva, de Isa Prahl, dois olhares distintos sobre as atribulações familiares.
Por falar em famílias, no dia 27 há uma sessão para pais e filhos com a aventura Timm Thaler ou o Riso Vendido, de Andreas Dresen, e ainda uma sessão especial de O Filme dos Três Vinténs de Brecht, assinado por Joachim A. Lang, que recua até 1928, República de Weimar, para explorar a complicada relação do jovem Bertolt Brecht com a indústria cinematográfica desejosa de levar à grande tela o seu sucesso A Ópera dos Três Vinténs. Na tonalidade histórica, saltam também à vista o drama de época Luz, de Barbara Albert, a retratar, na Viena de 1777, a pianista invisual Maria Theresia Paradis, cujo virtuosismo artístico assentava na sua própria deficiência, e Angelo, de Markus Schleinzer, o filme de encerramento desta 16ª edição da KINO (dia 30) que, partindo de factos verídicos, conta a história de um africano levado para a Europa no século XVIII e feito atração da alta sociedade vienense.
Farol do Caos, de Wolf-Eckart Bühler (dia 26, 14.00)
Este ano a secção "Foco" da KINO é dedicada ao encontro entre o crítico e cineasta alemão Wolf-Eckart Bühler e o ator de Hollywood Sterling Hayden. Um encontro que aconteceu no início da década de 1980 e que ficou registado num documentário para lá de informal chamado Farol do Caos (1983). Aqui vamos descobrir o Johnny Guitar do filme de Nicholas Ray na casa dos 60 anos, de barba branca, retirado da indústria americana e a viver sozinho num barco atracado em águas fluviais francesas. Bühler filma-o na sua máxima descontração, a deixar-se acontecer entre a bebida constante, cigarros, haxixe num cachimbo longo, leituras inflamadas de Robert Louis Stevenson e grandiosas divagações sobre a solidão do mar, a escolha do seu modo de vida e o caos interior. Um retrato verdadeiramente fascinante e magoado, que surge no programa em diálogo com O Náufrago (1984), uma adaptação livre ao cinema, de novo por Bühler, da autobiografia de Sterling Hayden.
Sobre Tudo Sobre Nada, de Dídio Pestana (dia 26, 19.00)
Neste documentário, composto por uma coleção de filmagens Super 8, Dídio Pestana desce ao interior das memórias pessoais para as apresentar numa subtil expressão emocional. A voz em off do realizador e músico é o fio condutor entre as imagens granuladas que reconstituem uma espécie de narrativa diarística ao longo dos anos, desde que foi viver para Berlim em 2006. Fugindo a qualquer linearidade, essas memórias surgem matizadas ora por um diálogo íntimo com o pai, ora por reflexões em torno das antigas namoradas. É um discurso onde cabem a família e os amigos (como o realizador Gonçalo Tocha), e que filtra as diferentes paisagens por onde a câmara passou (não apenas a cidade de Berlim, mas também Açores, Dinamarca, Guiné-Bissau...) produzindo uma experiência imersiva e sensorial.
Entre Corredores, de Thomas Stuber (dia 26, 21.00)
É entre os corredores de um hipermercado que o seu mais recente trabalhador, Christian, vê pela primeira vez Marion, a colega por quem se apaixona, e que parece oferecer um ar de maresia à estrutura rígida do quotidiano (e dos armazéns). Centrado nestas duas personagens, o filme de Thomas Stuber acaba por conter o próprio retrato dos trabalhadores de uma província do leste da Alemanha, revelando aqui e ali as suas discretas angústias. Sobretudo, é o modo como aqui se filma a lógica industrial de cada dia, da qual desponta uma humanidade silenciosa, que faz deste conto um bonito trajeto, tocado por um romantismo inefável. Juntos, os atores Franz Rogowski (Em Trânsito) e Sandra Hüller (Toni Erdmann) concentram uns pozinhos de realismo mágico.
Adam & Evelyn, de Andreas Goldstein (dia 27, 21.00)
O som da natureza e o som da rádio. Os dois conferem textura a este plácido filme de Andreas Goldstein, que avança narrativamente tal como o carro avança na estrada - eis o movimento que mais se vê em Adam & Evelyn, com paisagens fugidias a abraçar as personagens. Adam é costureiro, Evelyn empregada de mesa, e veem as suas férias de verão (ano de 1989) estragadas por indícios de que ele a anda a trair com as senhoras a quem faz vestidos... Mas Adam não desiste e segue Evelyn estrada fora, numa altura em que a Hungria abre as fronteiras com a Áustria: aqui as questões do coração vão cruzar-se com o cenário político e o passaporte torna-se um documento fundamental na viagem que é este filme, impregnado de bonomia.
Aeroporto Central THF, de Karim Aïnouz (dia 28, 19.00)
Por vezes o lugar é a primeira personagem de um filme. Isso mesmo acontece com este documentário do brasileiro Karim Aïnouz, que encontra no Aeroporto de Tempelhof (Berlim) uma história que vale a pena contar. Tendo sido construído com base na megalomania de Hitler, o aeroporto veio a sofrer as consequências do pós-guerra e em 2008 acabou mesmo por ser encerrado e convertido num local de lazer. Hoje em dia, moldado pelas circunstâncias históricas, serve de guarida para os refugiados que vão chegando à cidade... Aïnouz faz então um registo da vida neste lugar, apontando a câmara aos corpos que deambulam à espera da sorte e à imensidão arquitetónica, quase futurista, que define o espaço. Ao longo das estações do ano, um dos jovens refugiados vai tornando esta crónica simultaneamente íntima e universal, num relato que respira com as imagens de Tempelhof.