A máquina do tempo de Linklater 

O mais recente filme do realizador de <em>Boyhood </em>é uma animação mas tem toda aquela magia do real que marca o seu cinema de detalhe memorialista. <em>Apollo 10 ½: Uma Infância na Era Espacial </em>estreia-se na Netflix.
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É já no final do filme que se ouve dizer a propósito de como funciona a memória: "Mesmo que ele estivesse a dormir, pensará que viu tudo". O rapazinho de quem se fala, Stan, estava meio adormecido no sofá quando Neil Armstrong pisou a superfície da Lua. E no entanto a força desse momento histórico é a razão de ser de Apollo 10 ½: Uma Infância na Era Espacial, animação que habita a margem criativa entre o que se viveu e o que a imaginação recheou. Há aqui um efeito de cápsula do tempo, um pormenorizado exercício de memória(s), com espessura autobiográfica, que nos devolve à nitidez própria do cinema de Richard Linklater, alguém sempre capaz de captar com detalhe o mundo no seu entorno, num determinado ano. Stan corresponderá então à criança Linklater, e percorrer com ele as sensações de uma época e de um lugar tem todas as garantias do homem que se dedicou às dores de crescimento e à essência da passagem do tempo em Boyhood: Momentos de Uma Vida (2014).

Estamos em 1969, El Lago, Texas, mais precisamente num subúrbio do sul de Houston, a pouca distância da NASA. Com o programa espacial ali ao lado e os problemas maiores reduzidos à caixinha da televisão (Guerra do Vietname, luta pelos direitos civis, Guerra Fria), a miudagem absorve aquele espírito de ficção científica à solta na rua que torna palpável a visão do futuro. Por essa altura em Houston não imperava uma consciência histórica, porque "o que se via era novinho em folha", como diz o narrador Jack Black. E é na vibração desses dias, em que se contrariavam as más notícias com o otimismo da ciência superpoderosa, que Linklater inscreve a sua fantasia de infância: Stan é a criança que, numa missão ultra-secreta resultante de um erro de cálculo no tamanho do módulo lunar, se antecipou a Armstrong.

Apollo 10 ½, uma muito recomendável novidade no catálogo da Netflix, arranca com este episódio do recrutamento de Stan, mas não segue logo a direito. Fazendo uma marcha-atrás de mais de 50 minutos - que será o miolo do filme, até regressar ao ponto inicial - Linklater dá azo à sua habilidade para viajar até ao âmago de um certo "como se vivia". E fá-lo recuperando vagamente o estilo de animação de rotoscópio usada em Waking Life (2001) e A Scanner Darkly - O Homem Duplo (2006), em que a performance dos atores serve de referência ao animador. Também por isso, e pela filigrana memorialista, este teletransporte visual tem um sabor a nostalgia cool.

Desde as reuniões familiares à volta da TV para ver séries como Dark Shadows e Twilight Zone, à banda sonora futurista com temas como The Shape of Things to Come e Out of Limits, Apollo 10 ½ apoia-se num relato vívido que flui com os desenhos altamente realistas. Não estamos muito longe do trabalho de especificidade temporal de um Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, ou de um Era Uma Vez em...Hollywood, de Tarantino, ambos com outro calibre e fôlego. O passeio animado de Richard Linklater vem picar o ponto com leveza, graça e coração, naquele registo em que o realizador americano tem deixado a sua marca. Dito de outra forma, o deleite do ar do tempo é com ele.

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