O conhecimento da poeta Louise Glück era restrito até o Nobel da Literatura de 2020 ser anunciado em outubro e a autora norte-americana entrar no domínio comum dos leitores. O editor Francisco Vale tentava há alguns anos publicá-la na "mais longa coleção de poesia em Portugal" mas era "difícil fazê-lo devido aos poucos leitores que tinha no nosso país". Ao tornar-se Nobel, a editora Relógio D"Água avançou na aquisição dos direitos e a obra de Glück terá até ao fim do ano nove volumes publicados. "Fizemos uma proposta que foi aceite. O facto de termos muitos títulos, bastantes edições bilingues, alguns Nobel, foram argumentos fortes para conseguir os direitos", explica..Quanto a leitores para poesia contemporânea em Portugal ou se ser Nobel faz nascer público, é uma questão a que Vale não foge: "Ser Nobel ajuda". No entanto, garante que "o editor não deve ter uma preocupação sobre o número de leitores, mas sim em os criar com a publicação das obras, ter empenho e convicção da sua divulgação". Como já "tinha lido parte da sua obra", escolheu os quatro títulos já editados (na página ao lado) e, diz, os quatro que se seguirão permitem um quase total visão da obra da poeta. Entre eles estará Vita Nova, o preferido do editor, bem como Ararat e Meadowlands. Além destes, será ainda publicado um oitavo volume, The Triumph of Achilles, que reunirá além do original uma antologia de outros livros, bem como o inédito que será lançado até ao fim do ano. De fora, ficará por enquanto a ensaística..A aposta na poesia de Louise Glück é grande e as tiragens são elevadas para o que é normal em Portugal: "Acredito que se vão vender, faremos por isso, afinal temos autores que já ultrapassaram os cinco mil exemplares, como é o caso de Rimbaud, Lorca ou Szymborska.".A escolha criteriosa dos tradutores foi também um argumento importante para que a Relógio D"Água obtivesse os direitos da obra da Nobel, um processo que Louise Glück acompanhou de perto e também através de um conhecedor da língua portuguesa, o que permitiu esclarecer dúvidas na fixação final das traduções e até no grafismo das capas. "O facto de todos eles terem no currículo a dupla condição de poetas e tradutores ajudou a convencer a poeta e o agente e a eliminar dúvidas devido à exigência de rapidez na edição da primeira parte da obra", considera..A Ana Luísa Amaral coube a tradução de A Íris Selvagem: "Conhecia alguma da obra a conselho de um colega norte-americano que me deu The Triumph of Achilles, que tenho em primeira edição. Depois comprei outros." O anúncio do Nobel surpreendeu-a: "Sim, mas fiquei contentíssima por ser uma pessoa da poesia e mulher.".A Frederico Pedreira coube Uma Vida de Aldeia: "Eram poucos os poemas que conhecia, mas não fiquei propriamente surpreendido com o Nobel. O que não esperava, dadas as inclinações por vezes menos literárias e mais políticas ou geopolíticas do prémio, foi ter sido atribuído a uma norte-americana depois da - para mim muitíssimo justificada - concessão do Nobel a Bob Dylan quatro anos antes. Naturalmente, a partir do momento em que a tradução me foi proposta, procurei ler tudo o encontrei.".A Inês Dias coube Averno: "A escolha da Academia recaiu sobre uma grande poeta, valorizando o que ainda nos resta de poesia enquanto revelação e superação; uma «revenge against circumstance», nas palavras da própria Glück.".A Margarida Vale de Gato coube Noite Virtuosa e Fiel: "Conhecia a obra e tinha-a trabalhado nas aulas de tradução literária, como aqueles que elaboram um certo "revisionismo narrativo" e encenam vozes de mulheres mitológicas.".ImagensimagemDN\\2021\\02\ g-326697ac-a0ff-4a9d-a36b-36bd5824b306.jpg.Qual a principal dificuldade encontrada na tradução?.Há várias. Para já, como em qualquer tradução de uma língua anglo-saxónica para uma língua românica, há o problema da estrutura. O inglês é uma língua muito mais sintética. Depois, o tipo de linguagem usada por Glück é muitas vezes de registo quotidiano e, quando tentada passar para português de uma forma mais literal, não resulta. Glück é falsamente simples. Por exemplo, pense em Denise Levertov, que eu adoro traduzir, ou em Emily Dickinson, que traduzi. Nelas, os jogos de sintaxe são uma das grandes dificuldades - no caso de Dickinson, acrescente-se a regularidade formal, as rimas... Glück não tem rimas perfeitas (tem, sim, rimas internas), não segue esquemas rítmicos rígidos. Mas, paralelamente a esse quase raso registo, escolhe palavras que têm vários sentidos em inglês, o que obviamente dificulta a passagem para a nossa língua. Porém, como toda a tradução de boa poesia, é fascinante..Logo ao terceiro verso do poema A Íris Selvagem a poeta dirige-se ao leitor. É uma interpelação fundamental para este ir até ao fim do livro ou não pretende mais do que abrir "uma porta" para os poemas que se seguem?.Eu acho que é as duas coisas. Por um lado, o leitor nunca deixa de estar presente ao longo do livro, ao partilhar das inquietações dos humanos, das flores, até do divino. Por outro lado, é claro que é uma porta que se abre para visitar uma paisagem - ou paisagens várias, melhor dizendo..Com o progresso da tradução sentiu que entrou num mundo próprio ou não se diferencia de outras obras?.Qualquer poeta digno desse nome tem um mundo próprio, cria um universo seu que o distingue. Os poetas e as poetas que traduzi (como Blake, Shakespeare, Updike, Eunice de Souza, Dickinson, até, recentemente, Mário de Sá Carneiro para inglês) falam todos idiomas diferentes e próprios numa língua estranha e bela e perturbante que lhes é a todos comum - a da poesia. Louise Glück não é excepção..Este livro escapa aos temas principais da poesia da poeta ou não pretende fugir deles?.Este livro trabalha temas que surgem noutros livros seus, como a questão do divino, a busca da espiritualidade, a natureza, a morte e a perda, o renascer, o tema da mudança... Estou agora a traduzir Vita Nova, que dialoga com a mitologia, mas estes temas estão nele também presentes..Em "Vésperas" p. 91 há um diálogo com Deus, nas Vésperas da p.79 a assunção do falhanço no cultivo de tomates perante quem o autorizou. A religiosidade é um pilar incontornável deste livro?.Sem dúvida! Uma religiosidade nada ortodoxa, claro (veja que Deus nunca surge escrito com maiúscula, por exemplo). Não tem nada a ver com a religiosidade dos rituais observados; aliás, se há rituais observados eles são os dos ritos e ritmos da natureza. Eu falaria até mais em espiritualidade. E sim, a espiritualidade é incontornável em Glück, em minha opinião..Qual a principal dificuldade encontrada na tradução?.Foi uma felicidade ter-me calhado esta tradução, e especialmente este livro. Naturalmente, a partir do momento em que a tradução me foi proposta, procurei ler tudo o que pude encontrar da poeta. Ainda assim, Uma Vida de Aldeia é um livro muito particular, isto porque me parece que o diálogo com a natureza, e especificamente esta noção quase insular e pastoril de "vida de aldeia", enrobustece aquilo que existe de melhor nesta poesia, tratando-se de um diálogo de cariz meditativo que reavalia constantemente a condição do eu, com todas as suas experiências e memórias associadas, sejam elas mais ou menos inventivas. T. S. Eliot falava numa poesia meditativa para se referir a uma poesia que dava primazia a uma espécie de diálogo que o poeta entretém consigo mesmo, ao invés de se dirigir a um público ou auditório. Gottfried Benn chamava-lhe simplesmente poesia lírica..Parece-me que a ideia de poesia meditativa encaixa perfeitamente no caso destes versos de Glück. Claro que a natureza surge notoriamente em lugar de destaque neste livro; ainda assim, parece-me servir como um lugar de repouso que a poeta explora para desenvolver uma intimidade às avessas com o leitor, em que aquilo que é dito é primeiramente dito para resolver ou clarificar uma inquietação (emotiva, espiritual, existencial) que serve como matéria de conversa íntima, e só depois para comunicar com o leitor (contar uma história, descrever um ambiente mais ou menos pitoresco, etc.). Tudo isto acontece em simultâneo, mas um olhar mais demorado encontrará certas prioridades nestes versos. Aliás, a questão de um suposto tu nestes poemas, que em inglês não implica o mesmo género de dificuldades que em português, terá sido talvez um pequeno obstáculo a uma tradução mais literal. É que a poeta não está, neste livro, a fazer uma espécie de visita guiada à aldeia retratada, mas sim a conduzir o leitor por uma topografia dos afectos que tanto devem à dispersão da sua paisagem interior como aos lugares descritos e às pessoas (ou arquétipos de pessoas) evocadas. O tu, nestes poemas, é muitas vezes a poeta a falar consigo mesma e a querer ao mesmo tempo falar com o leitor. E o leitor, lendo-a neste livro, é como se escutasse por alto uma conversa a sós. E esse género de intimidade não declarada, antes sugerida, é, parece-me, o que há de mais belo neste livro, para além de toda a mestria que Glück consegue demonstrar nos seus versos aparentemente despojados..É aliás por causa desse despojamento que cada efeito dito poético nos seus versos actua como uma cintilação num ambiente naturalmente rico e denso de imagens e cor humana, mas agressivamente linear no comportamento das paisagens. Por fim, existe uma crueldade latente nesta poesia que se redime não através de uma suposta honestidade lírica, mas pela economia e contundência dos versos. Neste livro, a natureza é bela e dada à contemplação só até certo ponto, a partir do qual o seu lado contemplativo passa a ser intrusivo e espinhoso. O poema "Primeira Neve" parece-me retratar com particular acuidade a difícil convivência do ser humano com aquilo que o rodeia e inclusivamente com os seus afectos: "Como uma criança, a terra prepara-se para ir dormir; / a história é mais ou menos assim. // Mas não estou cansada, diz ela. /E a mãe diz Podes não estar cansada, mas eu estou - // Percebe-se isso no seu rosto, qualquer um percebe. / Por isso, a neve tem de cair, o sono tem de vir. / Porque a mãe está farta até à morte da vida que leva / e precisa de silêncio.".Qual a principal dificuldade encontrada na tradução?.No caso de Louise Glück, talvez o mais árduo seja conseguir respeitar, sobretudo numa língua românica como a nossa, essa aridez aliciante e profundamente íntima que ela domina na perfeição - e que só uma leitura apressada poderia alguma vez confundir com prosaísmo ou facilidade..Averno é um livro muito organizado ao nível da estrutura..Concordo, mas acrescentaria que qualquer grande livro de poesia tem uma coesão quase inabalável. Caso contrário, seria um mero ajuntamento de poemas - e um livro de poesia, quase por definição, é outra coisa..Uma forma de Glück aprisionar os temas clássicos da poesia para os reinterpretar?.Mais do que «aprisionar», eu diria que Louise Glück, como quase todos os grandes poetas, revisita e actualiza os temas clássicos de um modo muito pessoal, sem por isso cair em confessionalismos estéreis..Ao utilizar o mito de Perséfone a poeta quer ignorar a sua condição humana?.Os mitos gregos, muito embora os protagonistas sejam quase todos de natureza divina, têm sempre um carácter extremamente humano. De resto, não vejo como pode um poeta (ou um pintor, ou um compositor) ignorar a sua condição humana. Pode amá-la, odiá-la, simplesmente consenti-la. Mas não lhe pode fugir. Não vejo de todo, na poesia de Louise Glück, esse desejo de ignorar a condição humana. Muito pelo contrário. Basta pensar na maneira como aborda o 11 de Setembro na impressionante sequência «Outubro», com que Averno começa. Quanto a Perséfone especificamente, apeteceria dizer que ela passava férias no inferno, ao passo que nós o fazemos a tempo inteiro..Considera que esta apropriação da natureza é a melhor forma para Glück se expressar?.Tenho algumas reservas quanto a essa ideia de «apropriação da natureza», seja em Louise Glück, seja em qualquer outro poeta. A única coisa de que o poeta realmente se apropria são as palavras, e mesmo estas já lhe chegam gastas e cansadas, mas são tudo aquilo de que dispõe. A poesia talvez não passe necessariamente por uma tentativa de apropriação ou de inovação, mas antes por algo muito mais difícil de definir: autenticidade. E eu encontro isso em Louise Glück..Há opiniões de que este livro é a obra-prima de Glück. Concorda?.É, sem dúvida, um dos seus pontos altos, como a própria autora reconheceu, aliás, numa entrevista recente. Mas não o único; basta ler Ararat, The Wild Iris ou, por exemplo, Meadowlands, que me encontro agora a traduzir..Qual a principal dificuldade encontrada na tradução?.No fim do livro há uma nota minha que dá conta desta questão: uma foi a elisão de género do sujeito poético, para que o leitor português só descobrisse de quem era a voz de determinado poema do livro (do pintor ou duma poeta) quando se escolhia revelar tal identidade no poema original. A outra teve a ver com o trocadilho fonético entre "Night" e "Knight", com que joga o título do próprio livro, e que não consegui resolver completamente. Ainda pensei intitular o livro Paladinos da Noite, mas podia induzir o leitor no erro de se tornar num ambiente mais Games of Thrones... Depois há aquela dificuldade que eu penso ser geral que é conseguir a simplicidade subtil, tantas vezes dúplice, do estilo de Glück..Este é um livro onde se reflete o envelhecimento da poeta? .É um livro onde se juntam duas pontas: a infância (e a pureza e crueldade que dela se projetam) e a velhice (e seu desejo de revelação). Pelo meio há o trauma e o regresso aos mortos..Pode-se dizer que este Noite Virtuosa e Fiel privilegia mais do que nunca a dúvida perante as certeza do seu passado e que o presente mais não é do que uma ilusão renovada?.É uma interpretação possível, mas também não creio que a obra anterior revele tantas certezas....Pode uma poeta escapar à autobiografia num livro como este?.Sobre isso, este livro contém uns versos muito interessantes - no caso, dirigidos aos pais pela voz poética feminina (mas que talvez também possamos pensar ser dirigidos aos leitores): "Eu estou sempre a escrever sobre vós, disse alto. / De cada vez que digo "eu", é a vós que se refere.".Há na obra de Glück influências de outros poetas/escritores e ela é exposta?.Sim, julgo que uma grande influência é Emily Dickinson, cujo "desvendamento velado" a poeta comenta elogiosamente nos seus ensaios sobre poesia. Aí também revela outros autores que percebemos terem sido importantes para ela, como William Carlos Williams ou Mark Strand. Também a literatura alemã, como Rilke... e em Noite Virtuosa e Fiel há uma referência importante a Morte em Veneza de Thomas Mann... E também lá vem Jacques Brel, um cantor que talvez lhe interesse pela maneira como ele transfere a autobiografia para o retrato social de uma certa burguesia.