A lusodescente talentosa, o estudante da Covilhã e o alentejano sem neve

Vanina Oliveira, Ricardo Brancal e José Cabeça vão representar Portugal nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, que começam sexta-feira sob boicotes diplomáticos.
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Setenta anos depois da estreia de Portugal (Duarte Espírito Santo no esqui alpino), participar continua a ser a grande vitória dos atletas portugueses. Ricardo Brancal nasceu na cidade-neve, mas José Cabeças nem uns flocos tinha para a amostra e treinou na estrada. Já Vanina Oliveira cresceu nas melhores estâncias dos Alpes.

O esqui é a minha paixão e faz parte da minha vida desde os dois anos." Foi com esta declaração de amor que Vanina Oliveira se deu a conhecer em 2019, através do DN, antes de representar Portugal nos Mundiais de esqui alpino com apenas 16 anos. A lusodescendente tem agora 19 e vai cumprir o sonho de competir nos Jogos Olímpicos de Pequim 2022, que arrancam já na sexta-feira.

Nasceu em França, filha de Alice, uma portuguesa natural de Grenoble mas com raízes em Atães, concelho de Guimarães, que ainda grávida foi à embaixada portuguesa para saber o que tinha de fazer para a filha ser portuguesa e voltou lá para a registar com seis meses. Vanina mal sabia andar quando começou a esquiar, com dois anos.

Vivia a 50 metros da estância de Saint-Hilaire du Touvet (França) e todos os dias ia praticar. O pai, Yannick Guérillot, que chegou a representar a França na Taça da Europa e era instrutor de esqui, percebeu que a filha tinha talento. Tanto que a família Guérillot se mudou para o Vallée en Savoie (Alpes) para que ela pudesse ter o melhor acompanhamento possível. Aos cinco anos iniciou-se nas pistas de neve, mas à medida que crescia em talento ia sendo obrigada a superar algumas barreiras, como falta de dinheiro e de motivação, uma vez que em França há dezenas de atletas para cada vaga e Vanina não estava a conseguir entrar no elitista mundo do esqui francês.

Apesar das dificuldades, não demorou a mostrar que as medalhas e os pódios iam fazer parte da sua vida. Foi então que o pai a desafiou a competir por Portugal e Vanina Guérillot passou a Vanina Oliveira. A mãe contactou a Federação de Desportos de Inverno de Portugal (FDI-Portugal) para saber se havia essa possibilidade e eles até agradeceram, visto que os "altruístas olheiros" da federação já tinham identificado uma "interessante lusodescendente esquiadora". Foi avaliada pelo diretor técnico e começou a competir com as cores portuguesas. Segundo o presidente da federação, Pedro Farromba, "percebeu-se logo que havia alguma coisa especial na Vanina" e foi logo integrada no projeto olímpico Pequim 2022.

Subiu ao escalão principal com 16 anos, idade com que representou Portugal no Campeonato do Mundo de 2019, em Are (Suécia), com um honroso 37.º lugar no slalom. Em 2020 foi aos Jogos Olímpicos da Juventude arrancar um 28.º posto em super-G. Agora, em Pequim 2022, não estará nas melhores condições devido a uma lesão nas costas, mas competirá ao lado do ídolo Mikaela Shiffrin, dona de dois ouros e uma prata olímpica, nas provas de slalom e slalom gigante (dias 7 e 9): "Sei que não estarei entre as melhores, por isso o meu foco será produzir o meu melhor esqui, divertir-me e chegar ao final."

Vanina adora uma boa salada e quando não está a esquiar ou a estudar Geologia na Universidade de Grenoble gosta de desenhar e costurar.

Ricardo Brancal tem especial apetência para o slalom e slalom gigante e soma seis títulos nacionais nestas disciplinas, mas para se preparar para Pequim 2022 teve de trocar a sua Covilhã (cidade-neve), onde nasceu há 25 anos, pelos Alpes italianos. Para ele, "representar Portugal significa tudo", e por isso investiu forte na preparação para os Jogos Olímpicos de Inverno. Em outubro mudou-se para a Alta Badia Ski Academy (Itália) e não podia estar mais feliz com a decisão: "Tive uma evolução brutal."

Apesar de ser da zona que mais neve tem em Portugal (serra da Estrela), foi nas pistas francesas, numas férias de Natal, que o pai o deu conhecer à neve. Ele adorou e passou a praticar todos os anos, fosse na serra da Estrela, Lamogy (França) ou serra Nevada (Espanha). Até que se mudou para os Pirenéus franceses para adquirir bases na escola La Mongie. Sempre que podia, fugia até ao lado espanhol, e aos 16 anos mudou-se para a equipa espanhola White Camp.

Inspirado por Lindsey Vonn, Bode Miller e Marcel Hirscher, Ricardo Brancal procura o movimento perfeito. Diz que é "supercompetitivo" e que adora a adrenalina da competição e a sensação de liberdade com a qual muitos atletas de esqui se relacionam quando descem uma pista a velocidades estonteantes.

Integra o projeto olímpico português desde 2018. Já esteve em quatro Campeonatos do Mundo - o último, em 2019, em Are (Suécia), tendo terminado em 48.º em slalom. E já fez história ao terminar entre os 40 melhores na etapa de Cortina d"Ampezzo (ITA) do Mundial de esqui alpino, em fevereiro de 2021, naquele que é considerado o melhor resultado de um atleta português numa prova de esqui. Esse foi mais um da série de grandes resultados que lhe garantiram a presença em Pequim 2022, onde competirá no slalom e no slalom gigante (dias 13 e 16).

O seu objetivo é terminar entre os 50 primeiros. "Seria bom igualar ou superar Arthur Hanse, que obteve um top 40 em slalom [36.º lugar em Pyeongchang 2018], mas isso será difícil, pois o nível que ele tinha em 2018 é superior ao que eu tenho neste momento", admitiu o atleta, que vai ser porta-estandarte, juntamente com Vanina Oliveira: "Isso significa transportar entre as mãos toda a história do povo conquistador português."

Quando não está a esquiar ou a estudar Engenharia Biológica no Instituto Superior Técnico, gosta de jogar ténis - foi atleta federado - e não resiste a uma boa pizza.

José Cabeça, 25 anos, é um caso muito curioso entre os atletas de desportos de inverno. Alentejano de gema, aprendeu a esquiar... em Évora, de onde é natural, e sem neve. Pensou e interrogou-se por que raio não seria possível haver um alentejano nos Jogos Olímpicos de Inverno. E depois do karaté, da natação e do triatlo, e com muita persistência à mistura, conseguiu concretizar o sonho. Em Pequim vai participar na prova de esqui de fundo.

Basta abrir as redes sociais de José Cabeça para se perceber como tudo começou. São várias as fotografias do atleta a fazer roller-ski (modalidade que imita o esqui mas sem neve, com recurso a uma espécie de patins em linha) com a paisagem das planícies alentejanas como pano de fundo.

O início não foi fácil, já que Portugal não tem condições climáticas para desenvolver a modalidade. Mas José Cabeça nunca virou a cara à luta e começou pelo roller-ski. "Comecei a treinar essa vertente sozinho. Passado algum tempo, com bastante trabalho e foco, consegui chegar a um nível técnico que já dava para conseguir treinar, porque, no início, era apenas tentar fazer a técnica e nem me chegava a cansar", recordou à Lusa.

Já com prática adquirida no roller-ski, partiu para França, onde "tudo foi diferente", porque passou a ter acesso às pistas de esqui, e ao fim de dois meses até se estreou em competições da modalidade com as cores de uma equipa local.

No início, em terras francesas, sozinho e sem apoio de um treinador da modalidade, aprendeu a técnica ao observar outros atletas e "a ver vídeos". E, apesar de ser esquiador há pouco tempo, lembra que para trás estão "muitos anos de trabalho", que "não foram feitos no esqui" mas sim no triatlo, modalidade na qual começou a competir com 17 anos e onde ainda se mantém.

José Cabeça orgulha-se de dizer que aprendeu a esquiar em sensivelmente um ano. Em 2021 participou no Campeonato do Mundo de esqui nórdico, na Alemanha, e conseguiu aquilo por que sempre lutou: uma pontuação que lhe abriu uma vaga para Portugal nos Jogos Olímpicos de Inverno Pequim 2022.

Esta semana, antes da partida da comitiva portuguesa para Pequim, o atleta português voltou a lembrar a sua pouca experiência, admitindo que tem "menos de cinco meses de neve na vida. Sou alentejano e a última vez que nevou em Évora foi em 2004 e foi só um bocadinho. Não dava para esquiar. Sou tão novo nisto que tenho apenas quatro provas internacionais", atirou, algo que não lhe retira a ambição de ser "o melhor português a fazer esqui de fundo". E promete apenas "dar o melhor", reconhecendo que "um resultado a meio da tabela seria incrível" e que nos próximos Jogos "conversará"de maneira diferente".

isaura.almeida@dn.pt

nuno.fernandes@dn.pt

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