Primeiro rimos, e depois esse riso enregela. Quando começa A Lição, peça de Eugène Ionesco que Miguel Seabra hoje estreia no Festival de Almada - e que depois levará para o seu Teatro Meridional -, é provável que se ache graça àquela menina (Sara Barros Leitão), desajeitada, de um entusiasmo que quase causa vergonha alheia, tonta, que quer e pode fazer o "doutoramento total" porque é filha de pais ricos - ela o diz -, a titubear numa desmedida reverência ao Professor (Miguel Seabra). Talvez tenha graça vê-la dizer tudo o que sabe de cor, sem o saber realmente, como o Professor porá em evidência. Quanto a esse, inicialmente diz coisas elementares, não há como contestá-lo. E a própria criada (Elsa Galvão), Marie, parecerá talvez inofensiva..A rapariga chega para "a lição". Recorre àquele "suposto sábio", que ensina muitas raparigas como ela. "Dessa forma tem acesso rápido ao conhecimento. Nada mais contemporâneo do que isso. É o que se passa. Ainda agora tiraram a rapidez ao [Miguel] Relvas" diz Seabra, referindo-se ao ex-ministro que perdeu a licenciatura. A Lição é a primeira peça que Seabra protagoniza depois de O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão (2012), de Éric-Emmanuel Schmitt..A peça do romeno-francês Ionesco é de 1951, "quando o mundo, depois da II Guerra Mundial, estava à procura de identidade". Hoje, afirma Seabra - já na sua bonomia, fora da personagem -, A Lição é "extremamente atual". E porquê, se esta é, como diz, "uma peça fascista", que o mostra no seu esqueleto?.Porque Seabra a encenou e a faz estrear como "um grito". "A [atriz] Natália Luiza [que assina a versão final do texto] tem uma frase de que gosta: "A pulga não conduz a locomotiva, mas faz comichões no maquinista." Eu acho que aqui é parar a locomotiva. Não é uma pulga, é um enxame de abelhas. Tem de se parar esta locomotiva. E [a peça] é um espelho. Convicto, assumido.".Então Seabra fala do brexit e de "como se manipula o outro através da argumentação". "O Nigel Farage, que mexeu esta coisa toda, conseguiu que a Grã-Bretanha saísse da União Europeia e já se pôs na alheta. Estes gajos são Hitlers noutro formato. As convicções deles são a argumentação." Fala de Donald Trump para dizer que "qualquer estúpido como ele tem sucesso, porque as pessoas estão cada vez menos habituadas a pensar integralmente, inteligentemente, de inter legere: ler nas entrelinhas." Acrescenta: "O nosso papel é um bocado esse."."Não perdoo à coligação".Ainda a propósito de manipulação, fala dos anos de governação da coligação PSD-CDS. "Fomos manipulados criminosamente por aqueles senhores, com conhecimento de causa. O que fizeram foi cortar pela raiz um dos elementos mais frágeis e mais delicados do ser humano, que é a dignidade. Não lhes perdoo isso. Não perdoo à humanidade fazer tanto mal, com conhecimento de causa, aos seus pares. Este espetáculo fala sobre isso. O esvaziamento do outro através da manipulação convicta e consciente através de uma menina que representa os estudantes, os jovens, representa a futilidade atual das classes supostamente burguesas, que acham que podem comprar o conhecimento.".Hoje às 22.00, na Escola D. António da Costa, em Almada, e entre 13 e 31 deste mês no Teatro Meridional, em Lisboa, vai poder ver o espelho que Seabra nos preparou, naquele cenário de Marta Carreiras iluminado por Nuno Meira. Mas se o vai ver ali não é só pelo mal que nele possa estar retratado, é pela sua redenção também. "Eu acredito na humanidade, no homem. Também faço isso porque tenho o outro lado", diz. E porque o teatro é o sítio onde vamos ouvir histórias..Seabra conta, e logo se comove, como uma vez no Porto foi inusitadamente bem servido à mesa de um restaurante. "Às tantas perguntei à senhora: está a servir tão, tão, tão bem porquê? E ela deu uma resposta muito simples: porque vocês são atores e os artistas têm de ser muito bem tratados, porque vocês trabalham para nos ocupar os nossos tempos livres." E depois repete esta frase: "Não há amanhã no teatro." E, homem do teatro que é, conta a história. "Tive um AVC uma hora antes de entrar para o espetáculo que ia fazer no São Luiz, em 1995. Esse espetáculo já não fiz. Não há amanhã no teatro. Cada espetáculo é o único. O público vem aqui para ouvir uma história, paga bilhete, tem de levar um vendaval.".Neste "vendaval" vai assistir, por um lado, ao que há de profundamente humano naquela rapariga: "a ingenuidade, a poesia da fragilidade, conquanto ela venha já formatada, porque não sabe fazer contas mas sabe o resultado delas, porque meteu na cornadura aquelas contas macro. Não sabe quanto é quatro menos três". E vai assistir, logo depois, a um "esvaziamento total da energia humana". E talvez o sorriso que uma vez esboçou enregele e, desconfortável, se mexa na cadeira. Ou não. Afinal, parece que A Lição sempre se repete.