A ilha e os forasteiros – é praga mesmo

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Ao longo do ano os nossos dias são não só tranquilos como previsíveis. Desde manhã cedo até à noite a gente sabe que pessoas vai encontrar durante o dia e em que lugares, a que horas pode dirigir-se à mercearia tal para adquirir queijo fresco, se está interessado em comer torresmos sabe que é ao meio-dia de cada terça-feira que o Brandão os recebe, no que se refere às verduras a Verónica do mercado da rua de Lisboa garante-as às segundas, quartas e sextas...

Mas não é assim no chamado período das férias! De repente, entre julho e setembro, somos surpreendidos por uma avalanche de gente que chega e atravanca a cidade como verdadeiros invasores. Para além dos hotéis completamente cheios, é seguro que 80% das famílias residentes recebem pelo menos dois hóspedes. E o resultado é sair-se à rua ou ir-se à praia e ficar-se atarantado diante da barafunda de caras, roupas, penteados, óculos, bonés e idiomas cruzando os ares num festim de gralhas esvoaçantes. Porque é uma circunstância absolutamente curiosa: quando encontramos os nossos patrícios emigrantes em qualquer lugar no estrangeiro, seja nos autocarros seja nos centros comerciais, na rua ou dentro de casa, eles só falam em crioulo, um crioulo gritado que atinge os ouvidos mesmo a cem metros de distância, como que numa permanente afirmação de identidade. Eu mesmo já fui por diversas vezes repreendido por causa "dessa mania que tu tens de falar português, o crioulo é que é nosso". Porém, quando chegam na terra em férias, logo regressam à língua dos países de acolhimento como se lhes fosse língua-mãe. Então, as nossas ruas e praias e praças ficam atravancadas de uma algaraviada onde entram francês, italiano, holandês, norueguês e outras e mais outras. Mas ao demais, são perfeitamente vorazes, compram tudo, comem tudo, durante esse tempo não há queijos nas vendedeiras, o mercado de peixe está sempre vazio, também não há fruta, porque não obstante a sua sazonalidade o comércio nunca se prepara para os receber. E assim alegre e descontraidamente açambarcam o que encontram, invocando o direito de estarem em férias e de passagem. Muito antigamente desembarcavam carregados de tudo, até limão traziam, até vinagre e outros produtos assim banais, porque tinham partido numa altura em que os víveres escasseavam na terra e por isso preveniam-se no regresso. Mas depois deram conta de que afinal tínhamos saído da idade da pedra e agora apenas trazem euros para gastar.

Claro que esse desvario implica e muito com a nossa rotina. De tal forma que mesmo aqueles que adoram o bulício começam a desejar o regresso à pasmaceira do mês de outubro. É que nesse período em que a cidade se transforma numa Babel, as regras sociais como que entram também em suspensão. Há dias um grupo de jovens emigrantes perturbavam todo o mundo na praia da Lajinha com uma bola: Vocês vêm de onde, perguntei a um deles. Da Holanda! E lá, não é proibido jogar a bola na praia? Claro que é, respondeu admirado, além de multa até pode dar para pôr um man na fronteira sem comida de caminho! Então e aqui, vocês não acham que nós também somos gente? Mas ele nem reparou no remoque: Ah, aqui é diferente, aqui é a nossa terra! E para o provar começou a cantar: Sabura é li, na nos terra Cabo Verde... (Sabura é aqui na nossa terra...)

Bem, a verdade é que todos os anos a ilha parece mais cheia de forasteiros. De tal forma que os mindelenses residentes já os identificam com uma praga de mosquitos que aportou na terra porque, dizem, chateiam e incomodam por igual. Mas, apesar de tudo, não são poupados esforços no sentido de agradar os visitantes, de tal forma que até se inventou um carnaval de verão.

Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018

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