O que significa para si ser um "Herói da República de Cuba"? No início custou-me muito entender. Porque nasci e fui criado numa sociedade em que, talvez de forma errónea, associava a ideia de herói a grandes figuras da história. Mas há heroísmo em muitas coisas quotidianas. Às vezes é até mais importante que esteja no quotidiano do que ser uma questão de um ato do momento. Foi-me conferido esse título honorífico quando tinha 35 ou 36 anos, mas eu tinha uma vida pela frente. Continuo a ser uma pessoa normal. Para mim é uma responsabilidade em relação ao que tenho que fazer e como posso contribuir, ser parte deste projeto social, socialista, em que estamos a trabalhar todos os cubanos, apoiados por milhões de pessoas em todo o mundo..Ganhou essa distinção por ser um dos "Cinco de Miami", detido por espionagem nos EUA... Não estivemos detidos por espionagem. Essa é a maneira como o governo dos EUA nos apresenta. Nunca fomos acusados de ser espiões, mas de "atuar como agente de um governo estrangeiro em território dos EUA sem notificar as autoridades". O crime está em não notificar as autoridades que se cumpre essa função..Não se vê como um espião? Não. Vejo-me como uma pessoa que tinha a tarefa, que assumi com honra e orgulho, de proteger o meu povo e vidas humanas. O que esconde o cliché é gerar uma resposta instintiva negativa ao porquê de nós estarmos nos EUA..E porque estavam? Porque há uma longa história de utilização do território dos EUA, de financiamento e planeamento desde os EUA de ações violentas e terroristas contra Cuba. Com a cumplicidade do governo dos EUA e, durante muitos anos, a organização do próprio governo dos EUA. Depois fizeram vista grossa. Não podemos esquecer, agora que retiraram do Afeganistão após 20 anos de ocupação, que a invasão foi porque desde aquele país se organizaram os atentados do 11 de Setembro. Há muita hipocrisia aí. De onde saíam os materiais com os quais se agredia Cuba? Os explosivos que se usavam nos atos terroristas? Onde viviam e treinavam os responsáveis? Essa era a nossa missão. Saber isso, informar o governo de Cuba, para que Cuba pudesse salvar vidas. Mas isso era informação que se passou até ao governo dos EUA. Dois meses antes de seremos detidos a 12 de setembro de 1998, tinha ido a Havana uma delegação dos EUA que incluía a secção antiterrorista da polícia de Miami. Que faziam lá? Porque eles sabiam que era onde eles estavam..E ainda lá estão? Acho que a ideia de organizar este tipo de ações está na mente de pessoas que ainda estão radicadas em Miami. Essa é a sua visão sobre como vão acabar com o governo de Cuba. Que o façam ou não depende de muitos fatores, de conjunturas políticas, de o governo dos EUA aceitar que ocorra ou não... O mundo evolui. Não é o mesmo uma ação desse tipo agora, com os níveis de consciência que existem sobre os danos que causa o terrorismo internacional, do que há 20 ou 30 anos. Mas os personagens e as organizações ainda lá estão. Agora mesmo, por causa dos acontecimentos do 11 de julho [protestos contra o governo em Cuba], vimos vídeos de pessoas em Miami a dizer que iam para Cuba de barco e iam com armas... Há muita fanfarronice, mas certamente há muitos que têm os meios e estão lá. Que não passem à ação, obedece a muitos fatores. Mas, se mudam as circunstâncias, pode acontecer..Mas acha que representam a maioria dos cubanos que vivem nos EUA ou que a maioria quer um diálogo mais próximo com Cuba? Acho que a maioria dos cubanos que residem nos EUA, em Miami, são de uma mentalidade diferente. O advogado que me defendeu no meu julgamento era cubano. Acha que se o meu critério sobre os cubanos que vivem em Miami fosse radical, extremista ou intolerante teria permitido que me defendesse um rapaz que saiu de Cuba e se criou nos EUA? Não. Mas o que sucede com os grupos extremistas é que eles querem fazer crer que representam a opinião da maioria, porque controlam os meios de comunicação, têm a capacidade de passar a sua mensagem, e tiveram a oportunidade, durante anos, de intimidar para que outros não expressem as suas ideias. Mas a verdade é que a maioria dos cubanos que vivem nos EUA querem um vínculo diferente com Cuba. Estão nos EUA porque decidiram ter outro projeto de vida, ter rendimentos maiores, mas não têm uma posição hostil e muito menos violenta. A grande maioria dos cubanos que vivem nos EUA deseja uma relação normal com Cuba..Quantos anos passou na prisão? Passei 15 anos, 5 meses e 15 dias..E como foram esses anos? Sempre à espera de uma solução que lhe permitisse sair? É muito fácil chegar à prisão e convertermo-nos em presidiários, isto é, numa pessoa que se consome na dinâmica interna da prisão. Eu tratei de evitar isso. Em tudo o que podia, a minha mente estava fora dali. Na realidade de Cuba, na luta dos cinco pelo mundo, em manter-me informado... Foi assim que assumi a prisão. Dediquei muito tempo a estudar, a ler, a responder às numerosas cartas , aos temas legais. A cuidar de mim, a fazer exercício. Foquei o meu tempo dessa maneira. Não era o tipo de preso que estava a contar os meus dias. Sabia que existia uma luta por nós no mundo, mantinha uma correspondência ativa com muitos amigos, incluindo aqui em Portugal, que escreviam a contar o que faziam a nosso favor. Não prestava atenção a quanto tempo faltava, quanto muito a metas parciais, de um recurso, depois outro. E assim chegou o final da minha sentença. Eu cumpri a minha sentença completa..Três dos cinco acabaram por ser libertados em negociações de troca de prisioneiros com os EUA... René [González] terminou a sua sentença antes de mim e saiu. Depois terminei eu a minha sentença e saí. Os outros três companheiros, Antonio [Guerrero], Gerardo [Hernández] e Ramón [ Labañino] foram libertados oito meses depois, como parte da negociação entre Cuba e os EUA. Quando eu saí da prisão, já havia um processo de negociação que eu desconhecia e que incluía a libertação dos companheiros. Mas penso que, de alguma maneira, teve um impacto na minha saída. Não que fosse adiantada, mas porque facilitaram que eu saísse e regressasse a Cuba..E quando voltou, começou logo no Instituto Cubano de Amizade com os Povos, a que hoje preside? Eu regresso a Cuba a 28 de fevereiro de 2014 e entro no instituto a 9 de julho desse ano..E que faz o instituto? É uma organização social, criada em 1960, cujo objetivo fundamental é fomentar os vínculos de amizade e solidariedade com Cuba e de Cuba com o mundo. No início da revolução cubana, em 1959, gerou-se um interesse enorme de conhecer o que estava a passar naquela ilha. Há um grupo que organizou uma guerrilha, derrotou a ditadura de Batista, e estão a realizar transformações sociais em Cuba. Havia muito interesse em visitar o país, de vários setores da sociedade, intelectuais, trabalhadores, mulheres, estudantes. E uma parte importante do trabalho do instituto era organizar isso. E depois foi-se estruturando um movimento de solidariedade com Cuba, e criam-se associações de amizade. Hoje mantemos vínculos com 1622 associações em 162 países..Também é deputado na Assembleia Nacional de Cuba... Sim, por Santiago de Cuba..Como vê os protestos de julho? Há uma situação muito tensa em Cuba, uma situação económica muito complexa. Que tem uma razão: a guerra económica do governo dos EUA. Falo de guerra, porque não é só o bloqueio económico e comercial. É uma série de outras medidas para asfixiar a economia de Cuba e cortar os abastecimentos de recursos materiais e financeiros, até na pandemia. Penso que é criminoso que se usem as circunstância da covid-19 para conseguir um objetivo político. As demonstrações não foram tão grandes como se publicou na imprensa e nas redes sociais. Houve muita manipulação sobre a magnitude e o alcance das manifestações. É verdade que há um descontentamento num grupo da população, há insatisfação, há incompreensão também nalgumas pessoas que não compreendem de onde vêm as limitações que têm. O governo dos EUA utiliza esse descontentamento para lançar esta operação de comunicação e mobilizar um grupo de pessoas pagas com dinheiro do governo federal, através de organizações que estão nos EUA. Esse é o coração das manifestações. As outras pessoas unem-se a partir desse descontentamento, podem ter reclamações legítimas, mas não são pessoas que defendem a violência. Contudo, há um núcleo que sim, está pago pelos EUA..São esses que estão detidos? Fala-se ainda de centenas de detidos... Não tenho um número exato, mas houve transparência em relação a isso. As autoridades da procuradoria e das agências da lei foram à televisão e explicaram os processos. Ninguém é preso por sair à rua e emitir uma opinião. As pessoas que foram detidas foi porque participaram em atos de vandalismo ou podem ter participado em atos anárquicos, que têm que ser investigados. Há uma série de pessoas que vão ter que responder perante a lei, porque em nenhuma parte do mundo se aceita que saias à rua e partas vidros, destruas carros....Então não há gente detida só por ser oposição? Por emitir uma opinião contrária ao governo? Não há uma pessoa presa. Agora, se recorrem à violência ou organizam uma manifestação violenta, isso é outra coisa..Qual é a sua opinião em relação ao trabalho do presidente Miguel Díaz-Canel nos últimos anos? Eu vejo um esforço extraordinário não só de Díaz-Canel como presidente, mas de todos. Porque em Cuba pode haver um presidente, mas a direção é coletiva. E há um esforço extraordinário para organizar a resposta à covid e, enquanto se faz isso, continuar a dar continuidade a todos os outros programas de governo. E vemos todos os dirigentes nos territórios, nas comunidades, a tentar resolver a situação. Sinto respeito e admiração. Tudo sai bem? Não, nada é perfeito. Ninguém, individualmente, tem todo o conhecimento. Está a ser um esforço extraordinário..Oito anos de Barack Obama, com a aproximação a Cuba, e quatro de Donald Trump em que voltou tudo a trás. Algo mudou com Joe Biden? Não foram oito anos de aproximação com Obama. Se a aproximação de Obama tivesse sido desde o princípio, no final as coisas teriam sido diferentes, porque seria impossível reverte-la. Obama toma a decisão de mudar a relação com Cuba quando lhe restam dois anos de mandato. Demorou seis anos. Tomou a decisão, valentemente, e isso foi muito positivo. Não só para os EUA e Cuba, mas para o contexto da América Latina e do mundo, porque contribui para a paz, para que uma relação que é hostil se destrave e ainda que permaneçam diferenças de fundo, existia a vontade de conversar e de avançar em muitas coisas que são do interesse dos dois países. Penso que essa deveria ser a maneira de atuar. Este presidente, que concorreu com uma posição pública de que tentaria fazer algo parecido a Obama, não fez absolutamente nada até agora para mudar as coisas que Trump fez. A hostilidade de Trump contra Cuba está intacta com Biden. Até pior. As 243 medidas que aprovou Trump para enraizar o bloqueio, tirar a Cuba qualquer aceso a financiamento, a comércio, essas medidas estão intactas. Nenhuma foi mudada. Além disso, este presidente já tomou medidas que reforçam o bloqueio..Refere-se às sanções... Sim, sancionou oficiais do governo e empresas, pior que Trump. E depois dos acontecimentos do 11 de julho, veio dizer que Cuba era um estado falhado. Diga-me que estado falhado desenvolve cinco vacinas? Que estado falhado pode funcionar nas condições em que tem que funcionar Cuba, de escassez, e ainda assim organiza um sistema de distribuição de vacinas? Para nós é uma prioridade que se compreenda que vivemos assediados e que o bloqueio que se aplica contra Cuba também tem um impacto noutros países, porque viola a soberania de outros países. Porque se uma empresa portuguesa for castigada por uma lei dos EUA só por negociar com Cuba, o que está a acontecer com a soberania de Portugal? O bloqueio não afeta só o povo cubano..A revolução está a saber envelhecer ou está próximo da reforma? A revolução é infinita. Mas a revolução de 2021 tem características que não são as mesmas de 1959, tem as características do século XXI. Não só tecnológicas, mas até de organização. Quando falamos do empoderamento de um governo a nível local, para que tenha os recursos e tome as suas decisões, para que tenha um maior impacto para o desenvolvimento do seu território, isso é desenvolver também. Fidel deixou-nos um conceito de revolução que a primeira coisa que diz é "mudar tudo o que tem que ser mudado". E nós estamos a mudar. Mas não vamos mudar a essência da revolução, isso é o que queriam os EUA e enquanto isso não acontecer não vão ficar contentes, porque para eles a única mudança possível é que a revolução deixe de existir. E isso não vai acontecer..susana.f.salvador@dn.pt