A história de um futuro promissor

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Pensar que um elemento invisível, silencioso, que se move a uma velocidade sem precedentes, consegue atingir repercussões mundiais aos níveis sociopolítico, ambiental e de saúde pública parece digno de uma história de ficção. Os personagens são muitos, os que tratam, os que são infetados, os que sobrevivem, os decisores ou os cientistas, que procuram incessantemente encontrar respostas para reduzir as fatalidades e salvar a população.

Dezembro de 2019 é uma data que ficará assinalada por apresentar ao mundo um vírus novo, capaz de parar a economia e fechar o mundo inteiro dentro de casa. Tem o poder de mobilizar a comunidade científica mundial numa procura sem precedentes. Desde então, o dia-a-dia destes cidadãos que são cientistas mudou drasticamente e tem sido impulsionado por uma ânsia de resposta.

Chegou a Portugal em março com os primeiros casos de covid-19 anunciados. Cientistas e profissionais de saúde mobilizaram forças e conhecimento para trabalhar várias frentes, todas necessárias para combater a doença. Atacou-se a transmissão e para isso foi preciso desenvolver as melhores formas de identificar pessoas infetadas, de saber como o vírus infetava o nosso corpo e se transmitia de pessoa para pessoa, bem como o tempo que demorava a incubar. Chegou-se à conclusão de que o vírus podia ser transmitido de forma assintomática. A testagem e a proteção individual com o uso de máscaras e distanciamento social ganharam força. Hoje ainda se procura simplificar a testagem, para aumentar a sua abrangência, e reduzir a logística associada, idealmente num sistema de autocolheita, substituindo a amostragem da zaragatoa nasofaríngea por saliva, o que será muito útil, por exemplo, em escolas. Intensificou-se o estudo de como tratar a doença. Procurou-se descobrir quais os sintomas, os efeitos no nosso corpo a curto e a longo prazo e o motivo que levava ao desenvolvimento de uma doença com consequências tão heterogéneas (de infeção assintomática a doença severa e mortal). Tentou-se perceber como o sistema imune reage à infeção natural, e mais recentemente à vacinação, procurando perceber o tipo de resposta imune que desencadeamos e a sua duração. Para a infeção natural, percebeu-se que a resposta imune é muito díspar e que normalmente o sistema imune reage melhor quanto mais severa for a doença. Tentou-se identificar de onde veio este vírus para se evitar novas reintroduções. Tudo isto em confinamento e com filhos em casa. A realidade que também os cientistas enfrentaram, enquanto investiram todas as suas forças e conhecimento. A 30 de janeiro de 2020 é declarada a situação de emergência de saúde pública. Expectável e iminente.

Sabemos hoje, melhor do que nunca, que se tudo acontece de forma rápida, quase instantânea, é porque houve anos de investigação, de investimento, de aposta em descobrir o que parecia impossível existir e, sobretudo, porque houve resiliência para o fazer acontecer. Sequenciar o genoma humano demorou 30 anos, um caminho incrível de tentativa e erro que hoje é determinante para travar doenças ou identificar novas formas de tratamento. Esta técnica permitiu conhecer o genoma do vírus SARS-CoV-2, uma sequência de 29 903 letras, em menos de dois meses depois de entrar em circulação.

Em Portugal, no Instituto Gulbenkian de Ciência, desde o primeiro momento a preocupação foi, com a chegada do vírus a Portugal, se teríamos capacidade de implementar testes de diagnóstico e simultaneamente sequenciar amostras positivas. Foi claro que teríamos de ter uma resposta para o dia zero e que a rapidez na adoção e criação de protocolos, em sintonia com a comunidade internacional e portuguesa, seria essencial para o apoio na vigilância e na tomada de medidas de prevenção. Rapidamente se criou um consenso no tipo de testes, mas com a mesma celeridade começaram o esgotamento de stocks e os atrasos de entregas dos reagentes. Foi necessário repensar e adaptar os protocolos a novos reagentes e equipamentos sem perder o rigor e a robustez dos ensaios. Foi com o deslumbre que vimos os primeiros PCR positivos, como se estivéssemos a recuar ao tempo de faculdade onde o PCR era apresentado com a receita mágica para amplificar ADN.

Chegou o dia em que tínhamos as primeiras amostras de RNA de pacientes para sequenciar. A atmosfera vivida, aquando da confirmação das primeiras amostras, foi um misto de vitória, mas consternação de como algo tão pequeno parecia afetar deste modo a sociedade em que vivemos. Ainda não se falava de variantes, linhagens, mas sabíamos que aquelas letrinhas teriam a nossa total atenção nos tempos seguintes.

Rapidamente articulámos com vários parceiros e outras equipas. Não procurávamos só os colegas de sempre, mas sim todos os que queriam contribuir. Nunca a comunidade científica foi tão coesa, e ideias, protocolos, colaborações fluíam em grupos de Slack, WhatsApp, Twitter, e os arquivos de preprint tornavam-se os órgãos de consulta obrigatório onde cientistas e analistas apresentavam os últimos resultados, técnicas, hipóteses sem ceder à especulação. Se em abril de 2020 se sequenciaram as primeiras amostras, um ano depois Portugal tem mais de 3400 vírus escrutinados e analisados.

O SARS-CoV-2, que causa a covid-19, revelou ser um verdadeiro pesadelo para os evolucionistas: se por um lado parece ter uma taxa de mutação menor do que o vírus da gripe, e por isso é expectável que se altere mais devagar, por outro lado tem um genoma maior. A maior dúvida inicial tinha a ver com a importância, ou falta dela, das poucas mutações (alterações no genoma do vírus) que se iam observando. São precisos vários sinais que em conjunto indicam que uma mutação está a causar uma alteração na biologia ou epidemiologia do vírus. A primeira que tirou o sono foi a D614G, que, apesar de não estar localizada numa zona mais crítica, acabou por se espalhar pelo mundo e hoje já praticamente todos os vírus que sequenciamos a têm.

A seguir a esta primeira alteração que aumentou o fitness do vírus, seguiram-se outras. Quanto mais infeções há, mais mutações existirão, regra básica da evolução de todos os organismos. No mar das muitas mutações que vão aparecendo e desaparecendo, as mutações que ficam para a história são as localizadas na zona que não desejávamos que mudasse nada: o domínio de ligação do SARS-CoV-2 à porta de entrada das células - o recetor ACE2 e o alvo das vacinas. O vírus joga aos dados continuamente, alterando o seu código genético. Fá-lo não porque não goste de nós, mas simplesmente porque as mutações são para ele aleatórias e inevitáveis.

O vírus não consegue pensar, mas os investigadores aqui e em todo o mundo leem o seu genoma e, com uma amostragem periódica e incessante, vão seguindo os seus passos. Qualquer cartada indecente que faça, como a emergência de variantes indesejadas, quer aqui quer noutro local do mundo, é comunicada e dá imediatamente lugar a um esforço hercúleo para as exterminar. É um jogo de gato e rato que só termina com a vacinação massiva da população.

Criatividade e perseverança. Angústia e esperança. Todas características que um cientista reúne. Vivem um momento histórico nas suas vidas e nas suas carreiras! A procura incessante de uma resposta que pode estar nos laboratórios, descobertas que se querem já para salvar vidas. Um trabalho de forte cooperação hoje, mas que tem por base uma história robusta em conhecimento e investimento, que trouxe uma esperança renovada com a aprovação das primeiras vacinas. Um caminho feito em tempo recorde, mas que tem de ser claro, hoje e agora, que resulta de décadas de investimento em investigação.

O desenvolvimento de várias vacinas eficazes em menos de um ano foi uma ação sem precedentes e notável. Rapidez não se deve confundir com atalhos porque não descurou a avaliação rigorosa para garantir a sua segurança. A velocidade provém de décadas de investigação fundamental que acumularam um enorme conhecimento sobre outros coronavírus e sobre as formulações das próprias vacinas que puderam ser imediatamente aplicadas. Sabíamos que a proteína espícula (ou spike) é a mais imunogénica, ou seja, que desencadeia uma resposta potente no nosso sistema imune. Já se sabia que uma vacina eficaz teria de dar indicações ao nosso corpo para produzir anticorpos contra a espícula, e é por isso que quase todas as estratégias das vacinas contra o SARS-CoV-2 têm na sua composição a proteína ou o material genético que codifica a proteína espícula. Além disso, por causa das epidemias de SARS-CoV em 2002 e de MERS em 2012, várias vacinas foram desenvolvidas e testadas em animais apesar de não ter havido necessidade de as utilizar para mitigar a epidemia que felizmente foi controlada. Ouvimos falar de vacinas de mRNA agora, mas que resultam de anos de intenso trabalho científico e validação em áreas distintas: biológica celular, imunologia, química e farmacêutica.

Tudo começou com a descoberta da molécula de RNA mensageiro (mRNA) em 1961 e o aparecimento da ideia de que vacinas de mRNA podiam ser eficazes em 1989. Foram precisos anos de resiliência e dedicação para perceber como é que o nosso próprio mRNA funciona nas nossas células, como podia ser produzido no laboratório e entregue às células de um organismo. Foi preciso também perceber como é que o nosso sistema imune respondia a um mRNA exógeno e descobrir como é que reconhece e ataca um patógeno em geral. Estas vacinas estão em ensaios clínicos desde 2013 para prevenir uma variedade de infeções virais, doenças autoimunes e genéticas. A 22 de dezembro de 2020 é autorizada a primeira vacina contra a covid-19. A campanha de vacinação começou em Portugal a 29 de dezembro. Uma esperança que nasce da ciência!

Testar massivamente. Vacinar rapidamente. Acompanhar a efetividade da vacina e, se necessário, corrigi-la para responder às novas variantes. Seguir o vírus e antecipar movimentos para o travar. Tem sido uma batalha dura, mas os cientistas lutam e não desistem. Encontram obstáculos, mas procuram caminhos alternativos. Na impossibilidade de avançarem sozinhos, unem esforços. A resposta é que é a meta final!


Investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência

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