A história de Esty, uma rapariga "não ortodoxa" em busca da liberdade
Quando chegam ao lago Wannsee, os jovens tiram rapidamente a roupa, ficam só em fato de banho, e correm para a água entre risos. Esty fica a olhá-los, hesitante. Precisa ganhar coragem para, devagar, tirar os sapatos, as meias, a saia, a camisa de manga comprida, e, ainda semivestida, entrar na água. Até que, finalmente, quando ela mergulha, a peruca lhe cai da cabeça e é arrastada pela corrente. É aqui que começa a sua nova vida.
Unorthodox, a minissérie que estreou no final de março na Netflix, conta-nos a história de Esther Shapiro, ou Esty (interpretação de Shira Haas), uma rapariga de 19 anos, nascida e criada na comunidade judaica hassídica de Williamsburg, Brooklyn, Nova Iorque, que foge de casa e de um casamento infeliz e vai para a Alemanha. Baseada no livro de memórias de Deborah Feldman, publicado em 2012, Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots, a série de quatro episódios é tanto o retrato de uma comunidade ultraortodoxa, patriarcal e fechada como o de uma mulher em busca de si mesma e da sua liberdade.
A história é contada com flashbacks. Antes de se casar, Esty acreditava que o casamento podia ser o início de uma vida melhor. Apesar de se tratar de uma união arranjada pelas famílias, de ela mal conhecer o marido e de não terem qualquer contacto físico antes da cerimónia (nem um beijo), ela estava confiante. Mas o entusiasmo não durou muito. Mesmo com as explicações da "educadora sexual", Esty e Yanky (interpretação de Amit Rahav) têm muitas dificuldades em consumar a união. Sem engravidar e sujeita a enorme pressão social, ela sente-se cada vez mais infeliz e sozinha. Quando a série começa, passou já um ano após o casamento. Esty está finalmente grávida mas, antes de conseguir anunciá-lo ao marido, ele pede-lhe o divórcio. Ela decide então fugir de casa, levando consigo apenas um envelope com algum dinheiro, documentos e uma fotografia da avó.
Como Deborah Feldman, que atualmente tem 33 anos, Esty cresceu em Williamsburg, onde desde meados do século XX se instalou a comunidade hassídica de Satmar. Oriunda da Hungria, esta comunidade integra um ramo do judaísmo tradicional e ultraortodoxo. Após a Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes instalaram-se em Brooklyn e aí recriaram a sua comunidade, obviamente muito marcada pelas memórias e pela dor do genocídio. Os judeus hassídicos acreditam que a Tora, os cinco livros de Moisés, é a palavra literal de Deus. A crença fundamental do hassidismo é "não mude nada". Numa das cenas da série, o rabi lembra os seus fiéis: sempre que os judeus tentaram integrar-se noutras comunidades e adotar outro estilo de vida, foram castigados - fosse no antigo Egito ou na Alemanha nazi.
Assim, uma das características mais marcantes deste modo de vida é a enorme distinção entre o papel do homem e da mulher, seja no culto, seja na sociedade, na escola ou na família. Os rapazes estudam mais do que as raparigas mas todos eles frequentam escolas privadas, onde passam muito mais tempo a estudar a religião do que a aprender as matérias que são ensinadas nas escolas públicas. As raparigas não podem atuar em público - não podem cantar nem tocar qualquer instrumento, porque isso é considerado exibicionista e o lugar delas é na sombra.
Os casamentos arranjados são comuns. As regras de relacionamento são bastante rígidas para ambos - embora mais para as mulheres, claro. Após o casamento, a mulher fica em casa, nunca deve mostrar o seu cabelo natural e deve cobrir o corpo. A série mostra bem toda a obsessão com a pureza do corpo e a exigência de submissão da mulher, em todos os aspetos da vida e também na relação do casal. As cenas de intimidade entre Esty e Yanky são de uma violência emocional brutal. À mulher não lhe é permitido o prazer.
Existe uma enorme pressão para iniciar uma família rapidamente depois do casamento, pois a Tora instrui os seguidores a "serem frutíferos e se multiplicarem". Como Esty diz a certa altura: "Nós estamos a repovoar o mundo, a repor os seis milhões de judeus que morreram no Holocausto."
"O maior infortúnio social nesta comunidade é a infertilidade", explicou Deborah Feldman. "É motivo de divórcio. As mulheres que não podem produzir filhos são relegadas para a posição mais baixa possível na sociedade, são vistas como completamente inúteis, sem propósito e sem valor."
As comunidades judaicas hassídicas não são apenas bastante tradicionais, são também extremamente unidas, o que significa que a saída para uma vida secular é rara. Aqueles que optam por deixar a comunidade são frequentemente rejeitados pela sua família e ostracizados pelos amigos. Também lhes é geralmente negada a custódia dos filhos.
"Somos ensinados que o mundo exterior é perigoso, que precisamos estar juntos porque Deus nos escolheu e, se não seguirmos os mandamentos de Deus, seremos punidos de forma terrível. Crescemos com um medo tremendo", explicou Lynn Davidman, ex-judia ortodoxa, ao The Cut. Como os contactos com o exterior são escassos e as pessoas não têm acesso a televisão, internet ou qualquer outro meio de comunicação, os membros da comunidade sabem muito pouco sobre outras formas de viver e de pensar diferentes da sua.
No entanto, em Unorthodox não é só Esty que tem vontade de sair da comunidade. Moishe (Jeff Wilbusch) é um homem que já saiu da comunidade e acabou por voltar, estando dividido entre os dois estilos de vida, permanentemente tentado pelos prazeres da vida secular. E até Yanky, o jovem marido, acaba por descobrir que nem tudo é mau no mundo "lá fora" - afinal, ele também é vítima da educação que teve e a sua evolução ao longo da série chega a ser ternurenta.
Até porque, apesar de obviamente assumir o ponto de vista de Esty, que acaba por abandonar a comunidade, Unorthodox não deixa de nos mostrar um lado muito humano destas pessoas, marcadas por uma história de sofrimento e por uma busca sincera por um caminho que os conduza a Deus.
"Eu sou diferente", anuncia Esty a Yanky quando se conhecem. Como quem diz: eu não quero abdicar de mim.
Quando, julgando que ela nunca lhe iria dar filhos, o marido pede o divórcio, Esty fica em choque - para ele seria fácil refazer a vida, mas ela, que já não seria "pura", estaria condenada a ficar sozinha para sempre. Esse é o gatilho que a leva a planear a fuga. Ela foge para a Alemanha, porque esse é o local de origem da sua família e, por isso, tem possibilidade de obter a cidadania, mas que, paradoxalmente, é também o local onde os seus antepassados mais sofreram. Esty vai à procura de um futuro num lugar impregnado de passado.
A partir daqui a história de Esty é ficcional, apesar de inspirada na realidade de Deborah Feldman. "Tivemos muitas conversas sobre quando se pode sacrificar a verdade e quando não", explicou Feldman ao The New York Times. "Concordámos que se pode sacrificar a verdade, desde que isso não afete a verdade da narrativa." E o essencial dos medos, dos sonhos e das dúvidas de Feldman estão lá. Ao chegar à Alemanha, o choque com a realidade é enorme. Esty tem pouco dinheiro e, percebe agora, não tem educação suficiente. Como irá sobreviver? Irá adaptar-se?
Unorthodox é sustentada pela enorme representação de Shira Haas, atriz de 24 anos, sediada em Telavive, que já tínhamos visto em Shtisel, uma outra série da Netflix, ambientada num bairro ultraordoxo de Jerusalém, e que também podemos conhecer de filmes como Uma História de Amor e Trevas, dirigido por Natalie Portman, ou O Jardim da Esperança, de Niki Caro.
Aqui, ao longo de quatro horas, ouvimo-la falar em inglês e em iídiche - nenhuma delas é a sua língua materna, o hebraico. Tendo crescido em Israel, Haas já tinha algum conhecimento sobre este modo de vida mas só começou a aprender a língua, tal como grande parte do elenco, dois meses antes da produção. Unorthodox é, segundo a Netflix, a primeira série falada em iídiche, a língua que a maioria dos judeus usava na Europa antes da guerra.
Foi Eli Rosen, o ator que interpreta o papel de rabi - e que cresceu na comunidade hassídica de Brooklyn, que abandonou para estudar Direito e, posteriormente, dedicar-se à representação - que não só ensinou os atores a falar iídiche como assegurou que todas as roupas e todos os gestos correspondiam à realidade.
A cena do casamento de Esty e Yanky é particularmente delicada, por todos os rituais que envolve, mas no pequeno documentário que se segue à série as criadoras Anna Winger e Alexa Karolinski garantem que houve bastante cuidado para não cometer nenhuma imprecisão. Além de toda a documentação consultada, a equipa visitou o bairro de Williamsburg, observou as pessoas, tirou fotografias. Como é uma produção alemã, a série foi filmada quase totalmente em Berlim, só as cenas exteriores foram filmadas em Nova Iorque. E, dos cenários aos figurinos, houve um esforço enorme para garantir a precisão até os mínimos detalhes. Na verdade, para a produção isto foi bastante semelhante a fazer um filme de época.
Para Shira Haas, o desafio era ainda maior, pois a sua personagem passa por uma enorme evolução - começa por ser uma rapariga de longos cabelos soltos, que é abandonada pela mãe e educada pelos avós e que gosta de tocar piano; é depois uma jovem casada, frustrada, de cabelo rapado, que usa permanentemente uma peruca ou um lenço na cabeça, saias compridas, roupa modesta e conservadora; e, por fim, já em Berlim, procura ser uma jovem como todas as outras, assumindo o seu cabelo curto, usando roupas modernas, experimentando um batom, descobrindo-se a si mesma. A cada mudança, vemos como o rosto e o corpo de Esty se alteram, e como a tensão dá lugar ao sorriso. Afinal, como lhe disse uma amiga que a ajudou a fugir: a comunidade não é uma prisão, não existe arame farpado em volta do bairro, as grades estavam apenas na sua cabeça.