A guerra das Kalashnikov fez dez mortos num mês em Marselha
Muito mais do que as suas praias, é o lado negro de Marselha que tem servido de inspiração ao cinema e à televisão. Do clássico americano French Connection à série francesa Marseille, um thriller com Gérard Depardieu estreado no Netflix em maio. De tal forma que a indústria do turismo até já criou tours especiais que levam os turistas aos locais incontornáveis do crime organizado, passando por um ex-laboratório de tratamento de droga e por encontros com um ex-polícia e com um jornalista da área do crime.
Nas últimas semanas, Marselha tem feito jus à pior fama. Desde o dia 7 de agosto, os ajustes de contas entre gangues rivais ligados ao tráfico de droga já fizeram dez mortos, os últimos dois na noite de segunda-feira para ontem. E desde o início do ano, são já mais de duas dezenas - em 2015 registaram-se 19 homicídios deste tipo na cidade - as vítimas mortais de uma guerra travada sobretudo a tiro de Kalashnikov. Mesmo as duas últimas vítimas, encontradas mortas num bar do centro da cidade, foram alvejadas com uma pistola de 9 milímetros.
O motivo de tanta agitação na noite marselhesa prende-se com o reforço das operações policiais com vista ao desmantelamento das redes de tráfico de droga da cidade. Essa cocaína quase pura cuja exportação para os EUA ficou conhecida nos anos 1950 e 1960 por French Connection (e deu nome ao filme de William Friedkin Os Incorruptíveis contra a Droga, na versão portuguesa, e à sua sequela de 1975, realizada por John Frankenheimer e passada em Marselha) era fabricada nos laboratórios marselheses a partir do ópio trazido do Médio Oriente pelos bandidos da Córsega.
"Estes ajustes de contas, temos muita dificuldade em os evitar. Podem acontecer em qualquer lugar, em qualquer altura", explicava à AFP David-Olivier Reverdy, do sindicato da polícia Aliance.
As últimas vítimas desta onda de violência foram o patrão do bar onde decorreu o tiroteio, de 59 anos, e Franck Esposito, de 41, já "conhecido da polícia", segundo o procurador da República de Marselha, Xavier Tarabeux. As duas mortes ocorreram a menos de 200 metros da esquadra da polícia.
As casas de diversão noturna são palcos privilegiados para estes ajustes de contas entre gangues rivais. No fim de semana, um homem de 24 anos foi morto com dois tiros de Kalashnikov na cabeça diante da discoteca Rognac. Mas o episódio mais espetacular desta série de crimes ocorreu em pleno dia, a 7 de agosto, quando dois jovens foram apanhados numa armadilha, tendo um sido morto ao volante do carro que conduzia e o outro abatido a tiro também de Kalashnikov enquanto tentava fugir pela rua.
A espingarda automática criada em 1947 pelo russo Mikhail Kalashnikov tornou-se símbolo da luta de clãs em Marselha. Mas se os ajustes de contas aumentaram em relação ao ano passado, o total de homicídios na cidade baixou de 43 para 29 até final de agosto.
Cidade multicultural
Marselha tem uma população que junta um quarto de originários das ex-colónias francesas no Norte de África (os chamados pieds-noirs), sobretudo Marrocos e Argélia, a italianos, espanhóis, arménios e russos, tem também uma grande comunidade judaica. A diversidade aguça as rivalidades, como a que desde o final dos anos 2000 opõe o clã dos Blacks ao dos Ciganos. Os conflitos entre membros de ambos agravaram-se nos últimos meses depois de a polícia desmantelar uma rede de tráfico de droga dos Blacks. O clã dos Ciganos aproveitou a oportunidade para acabar com a concorrência e assim começou uma guerra de territórios.
No caso das famílias Redmania e Berrebouh-Tir, a polícia tem encontrado várias vítimas de vingança (ou vendetta). Com os agentes a acreditar que os gangues usam mesmo GPS para seguir os seus alvos.
"A polícia melhorou muito os métodos de investigação a posteriori. Em certa medida, isso permite-lhe saber quem pode ser a próxima vítima. Mas não há ferramentas que permitam proteger alguém de forma preventiva, explicou David-Olivier Reverdy ao jornal regional Midi Libre.
Autarca dos 15.º e 16.º bairros de Marselha, a socialista Samia Ghali admite haver uma certa "paranoia" entre os habitantes da zona norte da cidade, receosos de serem apanhados por uma bala perdida. "Mata-se por tudo e por nada, a qualquer momento, por isso tememos danos colaterais. Mão há limites, amanhã vão atacar as mulheres, os familiares", explicou Ghali ao Midi Libre.
Reduto da esquerda da década de 1950 até meados dos anos 1990 - entre 1953 e 1986 o presidente da Câmara foi o socialista Gaston Defferre -, Marselha está desde 1995 nas mãos de Jean-Claude Gaudin, da UMP (hoje Os Republicanos, de direita). Mas, sobretudo nos bairros pobres e violentos da zona norte, os marselheses trocaram a fidelidade ao Partido Comunista pelo voto na Frente Nacional, de Marine Le Pen. A viragem da cidade à direita -e até à extrema-direita - nota-se também nas eleições presidenciais, com Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine e fundador do partido, a vencer ali a primeira volta em 1995 e 2002 (ano em que passou à segunda).
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