Aquilo que acontece ainda nos primeiros minutos de Coisas de Homens tem uma força brutal. Gérard Depardieu, no jeito de caminhar pesado do seu corpo volumoso e triste, entra num salão de aldeia onde decorre o aniversário de alguém, e a sua presença rude instala uma promessa de violência. Depardieu é Bernard, o irmão da aniversariante (Catherine Frot), que não foi convidado para a festa mas mesmo assim fez questão de aparecer com uma joia cara para a presentear em frente a todos. Um gesto delicado. Talvez demasiado delicado para um brutamontes, e que será ainda mais incompatível com o teatro de palavras de ódio que se segue, levando à sua expulsão do almoço de convívio e ao seu posterior ato de aterrorização de uma família árabe... São vinte minutos de uma performance abominável, com o drama cravado numa personagem que, apesar de tudo, deixa entrever o homem para além das ações do monstro..Nada disto é de estranhar vindo de Lucas Belvaux, realizador atento à violência que nasce de um transtorno profundo, ligado a uma realidade específica - basta lembrar o seu filme anterior, Esta Terra é Nossa (2017), cujo argumento se debruçava sobre a ascensão de um certo partido da extrema-direita em França. E nada disto é de estranhar também vindo da sua sensibilidade de ator, capaz de extrair do elenco as notas brutas e subtis que se ajustam ao efeito dramático. O problema aqui é que os cartuchos ficam quase todos queimados nessa sequência inicial, acomodando-se "outro filme" pelo meio..Coisas de Homens é a adaptação de um romance de Laurent Mauvignier sobre os fantasmas de uma geração marcada pela guerra da Argélia. E se, de facto, traz um olhar sobre um conflito ainda pouco abordado no cinema francês - desde logo por comparação com a representatividade da guerra do Vietname no cinema americano -, Belvaux não foi capaz de se descolar do peso do registo literário. Dizemos peso porque, no resto do filme, tudo passa pela narração exaustiva do trauma de Bernard/Depardieu, isto é, desses anos em que a guerra o transformou num homem sem alma..Em longos flashbacks que, através de um coro de monólogos interiores, reconstituem momentos do passado na Argélia, partilhado por companheiros de um batalhão, Belvaux cede a uma estratégia narrativa demasiado óbvia: primeiro mostra o touro enraivecido, espicaçando o discernimento do espectador, para depois "explicar" as razões de Bernard numa crónica íntima e demonstrativa, que não consegue fugir à redundância das palavras. Como se o filme tivesse medo de perder o equilíbrio sem o apoio do texto (cuja qualidade não está em causa), quais rodinhas laterais da bicicleta. É nessa lógica simples e esquemática que se desperdiça algo do que era prometido no início: a atenção aos corpos magoados de três personagens/atores (Depardieu, Catherine Frot e Jean-Pierre Darroussin), que se apresentam como figuras assombradas por uma masculinidade putrefacta, a refletir uma exaustão geracional. Quando a câmara se detém sobre eles, Coisas de Homens vai substancialmente mais longe do que na representação das memórias na Argélia..dnot@dn.pt
Aquilo que acontece ainda nos primeiros minutos de Coisas de Homens tem uma força brutal. Gérard Depardieu, no jeito de caminhar pesado do seu corpo volumoso e triste, entra num salão de aldeia onde decorre o aniversário de alguém, e a sua presença rude instala uma promessa de violência. Depardieu é Bernard, o irmão da aniversariante (Catherine Frot), que não foi convidado para a festa mas mesmo assim fez questão de aparecer com uma joia cara para a presentear em frente a todos. Um gesto delicado. Talvez demasiado delicado para um brutamontes, e que será ainda mais incompatível com o teatro de palavras de ódio que se segue, levando à sua expulsão do almoço de convívio e ao seu posterior ato de aterrorização de uma família árabe... São vinte minutos de uma performance abominável, com o drama cravado numa personagem que, apesar de tudo, deixa entrever o homem para além das ações do monstro..Nada disto é de estranhar vindo de Lucas Belvaux, realizador atento à violência que nasce de um transtorno profundo, ligado a uma realidade específica - basta lembrar o seu filme anterior, Esta Terra é Nossa (2017), cujo argumento se debruçava sobre a ascensão de um certo partido da extrema-direita em França. E nada disto é de estranhar também vindo da sua sensibilidade de ator, capaz de extrair do elenco as notas brutas e subtis que se ajustam ao efeito dramático. O problema aqui é que os cartuchos ficam quase todos queimados nessa sequência inicial, acomodando-se "outro filme" pelo meio..Coisas de Homens é a adaptação de um romance de Laurent Mauvignier sobre os fantasmas de uma geração marcada pela guerra da Argélia. E se, de facto, traz um olhar sobre um conflito ainda pouco abordado no cinema francês - desde logo por comparação com a representatividade da guerra do Vietname no cinema americano -, Belvaux não foi capaz de se descolar do peso do registo literário. Dizemos peso porque, no resto do filme, tudo passa pela narração exaustiva do trauma de Bernard/Depardieu, isto é, desses anos em que a guerra o transformou num homem sem alma..Em longos flashbacks que, através de um coro de monólogos interiores, reconstituem momentos do passado na Argélia, partilhado por companheiros de um batalhão, Belvaux cede a uma estratégia narrativa demasiado óbvia: primeiro mostra o touro enraivecido, espicaçando o discernimento do espectador, para depois "explicar" as razões de Bernard numa crónica íntima e demonstrativa, que não consegue fugir à redundância das palavras. Como se o filme tivesse medo de perder o equilíbrio sem o apoio do texto (cuja qualidade não está em causa), quais rodinhas laterais da bicicleta. É nessa lógica simples e esquemática que se desperdiça algo do que era prometido no início: a atenção aos corpos magoados de três personagens/atores (Depardieu, Catherine Frot e Jean-Pierre Darroussin), que se apresentam como figuras assombradas por uma masculinidade putrefacta, a refletir uma exaustão geracional. Quando a câmara se detém sobre eles, Coisas de Homens vai substancialmente mais longe do que na representação das memórias na Argélia..dnot@dn.pt