A grande e única Touriga Nacional

Flores (violetas), frutos (bergamota e toranja), amargos (salinos e minerais), personalidade e muito sabor. Sem complicações nem véus desnecessários para o não-iniciado, é o que não pode deixar de ser dito sobre a Touriga Nacional, uma das mais nobres castas de Portugal.
Publicado a
Atualizado a

Há que fazer fé nisso, mas também há que recordar que ainda há apenas 30 anos nem entre as dez castas principais figurava, assim como há que ter em conta que é clássica na composição dos vinhos do Porto Vintage, a categoria suprema desta denominação de origem.

A nossa amiga Touriga Nacional foi em apenas três décadas catapultada para a ribalta vitícola do nosso país, mercê por um lado do aumento da procura, por outro pela sua franca adequação e resistência ao que conhecemos como aquecimento global. Ocupa hoje um orgulhoso terceiro lugar, perdendo apenas para a Tinta Roriz (Aragonês) e a Touriga Franca. Quanto a distribuição geográfica, a Touriga Nacional tem a sua bandeira de produção no Douro, seguindo-se o Dão, Alentejo, Trás-os-Montes, Bairrada, Beira Interior, Lisboa, Tejo, Setúbal, Algarve e Minho, por esta ordem.

Onde está o poder da Touriga Nacional? Na sedução e na diferença. Os bagos de Touriga Nacional são naturalmente num composto designado por antocianinas, que marcam presença nos processos de vinificação de castas tintas em maior ou menor volume relativo. Também existem por exemplo nas bagas de arbusto, como mirtilos e framboesas. É a elas que se deve a atraente coloração granada dos vinhos estremes de Touriga Nacional, consentânea com carga tânica moderada - leia-se vinhos com taninos pouco pronunciados - e por isso também com alguma fragilidade. A Touriga Nacional brilha sempre em lotes de vinhos novos quase dominando a prova, mas no processo de envelhecimento gosta talvez mais de funcionar em lote, juntamente com castas mais robustas. A chave está no terroir - combinação de solo e clima - em que as vinhas estão plantadas. Vamos dar uma volta?

Nos granitos altos de Figueira de Castelo Rodrigo, Pinhel e demais locais de vinha da Beira Interior, medram as que podem bem ser as mais notáveis vinhas de Touriga Nacional de todo o país. Abismei ainda há uma semana perante um maravilhoso Quinta do Cardo Reserva TN 2016 (Companhia das Quintas) da lavra do inspiradíssimo enólogo e criador de vinhos Luís Leocádio, que tem uma espécie de relação osmótica com as vinhas por que se movimenta, percebendo-lhes e respeitando-lhes detalhes com enorme subtileza. É um caso muito raro de vinho estreme de grande complexidade e que tem muito futuro pela frente, graças a três factores: composição dos solos, concentração dos bagos e enologia brilhante. Percebe-se e acredita-se logo mais na casta, mas há que ser realista e não esperar tal rendimento da casta só por si. A mão e o talento humanos são cruciais. Neste vinho, está todo o património de Touriga Nacional, como que a definir um padrão de comparação com todos os outros. Vou ser comedido nas "tecnicalidades", até por não ser enólogo nem cientista da área, mas temos um floral pronunciado a violetas, frutado eminentemente cítrico de raspa de toranja, e é incrivelmente salino na boca. Mas tudo isso é ainda pouco, porque o vinho é um colosso de prazer, força e longevidade.

O Dão é berço da Touriga Nacional e é impossível não chamar pelo maravilhoso Chão da Quinta Signature TN Reserva 2015 (Chão de São Francisco), um enorme Touriga que só podia sair do talante do enólogo Carlos Silva. Granitos muito velhos, forte salinidade e muita contenção extractiva no processo de fabrico, deixando falar a elegância e a concentração natural que o ano proporcionou. Na Bairrada, a conjunção de calcários e argilas é instrumental para conseguir vinhos prazerosos e cheios de futuro num território marcado pela hegemonia da grande casta Baga, emblema da região.

Há que provar o Quinta do Cachão TN 2011 (Messias) para dar com um Touriga austero e pleno de notas terrosas de cogumelos frescos, para aquilatar devidamente o poder de sedução da casta. Em Trás-os-Montes é gigante o Encostas de Sonim Grande Reserva TN 2015 que além de identitário da casta acrescenta frescura e impressões de bosque como esteva e trufas, talvez como nenhum outro. O imenso e prodigioso vale do Douro é também conhecido pela ilha de xisto, pela forte composição desse mineral em praticamente todas as vinhas, exceptuando as zonas de transição xisto-granito, curiosamente berço de belíssimos vinhos Touriga Nacional. Mais prodigioso que o vale é o talento dos irmãos Joana e António Maçanita, que literalmente viraram a Touriga do avesso, mostrando cambiantes e perfis totalmente originais. Absolutamente central e histórico o Maçanita TN Letra A Douro tinto 2017, uvas de altitude e em perfeito estado, a demonstrar quase o oposto do que disse no início da peça, já que este estreme de Touriga Nacional é totalmente autónomo, apresenta forte complexidade e é uma explosão conjunta de citrinos, chocolate e pimenta preta, absolutamente avassalador. Joana Maçanita como peixe na água. Outra grande enóloga, Sandra Tavares, assina na região de Lisboa um grande Touriga Nacional, CH By Chocapalha Vinhas Velhas TN 2017 (Quinta de Chocapalha).

De uma pureza tão forte que mergulhamos num bouquet floral a cada investida neste vinho único e fortemente conceptual, como que a ensinar um novo rumo para a casta na região. E já que estamos em atitude de vénia à enologia no feminino, impossível não nos determos em Marta Lourenço que na região Távora-Varosa produz os espumantes Murganheira.

O TN bruto 2009 é de antologia e é por isso mesmo um dos grandes expoentes vínicos da casta sobre que nos debruçamos, cuja prova é obrigatória para quem se interessa por conhecer a Touriga Nacional em todos os seus cambiantes. A região do Tejo, com os seus solos únicos, tem forte emblema de Touriga Nacional no Falua Unoaked 2015, um vinho tese que marcou posição no mercado nacional e que urge provar, uma vez pelo hino à diversidade que representa. Barros fortes e seixo rolado marcam a essência dos terroirs ribatejanos, conferindo a este original vinho uma compleição atlética, vigorosa e salina para que é preciso estar preparado. Impossível ir mais a sul que ao Algarve e também aí há boas surpresas. Correndo o risco de ser injusto, atrevo-me a escolher o fantástico Marquês dos Vales TN 2014, enologia do brilhante e maduro Paulo Laureano, postulado verdadeiramente universal para a Touriga Nacional, histórico a todos os títulos.

Numa certa edição do conceituado Concurso Mundial de Bruxelas, onde todos os vinhos são provados às cegas por profissionais de todo o mundo, assisti ao que para mim era impensável. Os quatro participantes da mesa cuja coordenação me foi confiada rejeitaram liminarmente todos os vinhos de uma série, por defeitos variados. Na verdade, tratava-se de uma série de vinhos Touriga Nacional de origem portuguesa e era tal a novidade que não aceitaram. Tentei demovê-los até aos limites das minhas funções e registei para mim a necessidade que há de ter iniciação para saber valorizar a casta. Exercício que talvez nos caiba primeiro a nós, depois ao resto do mundo. Vamos começar?

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt