A geração rasca tinha razão…

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Não faz muito sentido voltar à etimologia. A frase era boa, e ficou. E era injusta, o que também a fez resistir ao tempo. Neste caso, quase 25 anos. Quando Vicente Jorge Silva escreveu, em 1994, um editorial com o título "geração rasca" - e falava da minha geração - Portugal dividiu-se, como agora é um rito mundial, nos dois antagonismos do costume, sim ou não. E isso foi injusto para a geração e para o autor, um dos melhores diretores de jornal do nosso tempo.

Por isso, é com bonomia que podemos, agora, olhar para trás. Agora, o Governo do PS e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, concordam connosco, há um quarto de século, discordando deles próprios então. Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares: "Se não reduzirmos de forma drástica os custos com o ensino superior não vamos conseguir que os filhos da classe média consigam estudar no ensino superior." Alexandra Leitão, secretária de Estado da Educação: "É o último serviço público ao qual falta chegar a massificação." Marcelo Rebelo de Sousa: "A tendência na Europa é alargar o ensino obrigatório aos três primeiros anos do ensino superior e, a ser assim, faz todo o sentido acabar com as propinas."

Há mais de 20 anos, Marcelo, líder do PSD, e o Governo Guterres, do PS, aprovaram a terceira, e definitiva, lei das propinas que, avalia agora o Presidente, "não resultou". É um privilégio, o nosso, o de podermos olhar para uma discussão injusta, no passado, e retirar uma conclusão social importante. Portugal é, hoje, um país atrasado, com menos licenciados, mestres, doutorados, cientistas, do que devia ser. Ainda o era mais nos anos 90, quando as propinas venceram.

O argumento da tal geração não era outro: a gratuitidade do ensino superior é a condição essencial para superar esse atraso. O que se debateu foi, como é nosso hábito, a "verdadeira" razão do protesto: o egoísmo dos jovens, a sua boçalidade, o seu radicalismo, o erro de querer que o Estado pague o que eles gastam em roupa (juro, isto foi escrito), ou em copos (também).

Os estudantes que, na altura, passavam horas a debater o "financiamento do ensino superior" já sabiam que a derrota da altura seria temporária. Nós falávamos com professores que concordavam connosco, fossem de esquerda, de centro ou de direita, como Medeiros Ferreira, Mariano Gago e Fernando Gil. Só na minha faculdade, que não era das maiores, estavam lá o Vitinha, a Mariana, o Miguel, a Vera, o Rui, o Sérgio, a Sandra, o Luís, o Zé e centenas de outras e outros, zangados e calmos, sensatos e sonhadores. Olhando mais uma vez para trás, nessa altura já nos respeitávamos ainda sem saber que um tinha escrito o poema do Elevador da Glória (dos Rádio Macau); uma organiza exposições na Gulbenkian, outro ganhou o Prémio Pessoa de 2018; outra faz as capas que nos ensinam a perceber os livros; outro foi o eurodeputado que nos alertou, pela primeira vez, para os perigos do populismo de Víktor Orban; outro fundou organizações de direitos sexuais; outro fundou o SOS Racismo; outro ganhou o Prémio Saramago.

A geração não era rasca. Vinha depois de uma, antes de outra, fez o que podia, o que queria (percebam por que não nomeio outros 100, entre os que são muito bons no que fazem, e me orgulham, discretos, visíveis, filósofos, encenadores, economistas, atores, musicólogos, autarcas, poetas, críticos literários, especialistas em desigualdade, professores excelentes, vários prémios Gazeta de jornalismo, boas pessoas).

Perdemos, então, mais de 20 anos a ouvir o que diziam os estudantes, enquanto perdíamos tempo a avaliar as suas (diversas, inconstantes) intenções.

Hoje, quinta-feira, 10 de janeiro de 2019, as minhas duas filhas acordaram cedo. Chegaram à escola às 8.15. Não iam ter aulas, mas insistiram na pontualidade. Levavam cartazes, feitos ontem à noite, em casa. Há muito tempo que os estudantes do Liceu Camões, em Lisboa, pedem obras numa linda, vetusta e decrépita escola. Ninguém fez o que devia: ouvi-los. Elas foram manifestar-se para São Bento, como eu há mais de 20 anos. E têm razão, como eu tinha. Mas o Camões não dispõe, como eu, de um quarto de século para apreciar as alegrias de um bom consenso, como é agora o das propinas.

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