A Gdansk de Walesa orgulhosa de ser uma cidade livre
Um resto do muro de tijolo vermelho que rodeava os estaleiros navais de Gdansk foi transformado em memorial à liberdade. E junto colocaram um pedaço de cimento que fazia parte do Muro de Berlim. Uma associação óbvia entre duas cidades que contribuíram como nenhuma outra para a queda do bloco soviético. No grande porto polaco do Báltico, o sindicato Solidariedade nasceu em 1980 para desafiar o regime comunista. Na capital de uma Alemanha então dividida, o fim do Muro em 1989 prenunciou também o fim da Guerra Fria. "Nós jovens vemos espalhados pela cidade os monumentos a lembrar a luta do Solidariedade e de Lech Walesa, mas pouco falamos disso. Foi há muito tempo. Mas para os nossos pais e avós é uma época que estão sempre a recordar. Para aqueles que estiveram do lado certo foram os melhores anos da vida deles, apesar da repressão. Foi um tempo especial", diz Joanna Wisniowska, jornalista na Gazeta Wyborcza, um diário fundado em 1989 por gente ligada ao movimento pró-democracia.
Wisniowska tem 28 anos, quase a idade do jornal. Praticamente viveu sempre em democracia, pois a partir de 1989 o regime comunista começou a ceder e no ano seguinte o eletricista Walesa, antigo preso político e Nobel da Paz, era eleito presidente da Polónia. Mas Katarzyna Bartkiewicz, nascida em 1970, experimentou essa época. "Tenho memória do dia em que decretaram a lei marcial. Tinha 11 anos. Vínhamos da igreja e estava muita neve. Não paravam de prender pessoas", conta a atual responsável do departamento internacional do Solidariedade, referindo-se a esse 13 de dezembro de 1981 em que o regime, sob a liderança do general Wojciech Jaruzelski, decidiu esmagar os trabalhadores de Gdansk, que há mais de uma década desafiavam o Partido Unido dos Trabalhadores da Polónia, obediente a Moscovo. Entre os presos estava Walesa, então com 38 anos e já pai de meia dúzia de filhos, um operário de bigode cujo carisma atrairia tanto o operariado como os intelectuais e a Igreja.
O Solidariedade continua
Quem chega a Gdansk de comboio, mal sai da estação avista à esquerda um prédio com "Solidarnosc" no topo. É Solidariedade em polaco. Começou como sindicato, tornou-se movimento oposicionista, foi partido político, voltou a ser sindicato. Na realidade, hoje é uma central sindical, a maior da Polónia. Bartkiewicz tem uma versão diferente. "Nunca fomos um partido, mas flertámos com a política. O que foi a votos foi a Akcja Wyborcza Solidarnosc - AWS (Ação Eleitoral Solidariedade) que, claro, contava com muitos dos dirigentes. E Walesa foi o nosso primeiro presidente e temos orgulho. Vamos no quarto, Piotr Duda, metalúrgico da Silésia, no Sul", explica a funcionária sindical, sentada num gabinete onde a principal decoração é um planisfério, apesar de algumas fotos históricas, que são isso sim omnipresentes nos corredores dos andares do edifício. Este é ocupado quase na totalidade pelo Solidariedade, mas também aloja uma escola de línguas e até uma sede do Direito e Justiça (PiS), o partido no governo.
Junto ao prédio do Solidariedade passa um "caminho para a liberdade", linha branca no chão que guia os visitantes pelos locais históricos ligados à luta dos trabalhadores contra a ditadura, como o resto do muro do estaleiro ou as três cruzes gigantes com âncoras que homenageiam as vítimas da repressão de 1970 nos Estaleiros Lenine, rebatizados de Estaleiros de Gdansk.
A etapa seguinte é o próprio portão que dá acesso ao sítio onde Walesa trabalhava. Nas grades, uma fotografia de João Paulo II, o Papa polaco eleito em 1978 e que foi uma fonte de inspiração para o Solidariedade. A sua visita à Polónia logo no ano seguinte foi marcada por uma missa em Varsóvia onde falou do sofrimento da nação polaca ao longo de mil anos e apelou também à mudança, o que foi entendido como um sinal de apoio da Igreja Católica àqueles que desafiavam o regime. Garantes da alma nacional mesmo nos momentos em que o Estado desapareceu, como entre 1795 e 1918, os bispos polacos mantêm até hoje influência enorme na sociedade e João Paulo II, quando era Karol Wojtyla, cardeal de Cracóvia, sempre procurou atenuar o impacto das políticas ordenadas em Varsóvia.
Uma cidade progressista
"Mira, mira, es Juan Pablo II", aponta uma jovem espanhola às amigas, junto ao portão azul. São oito, e apesar do frio decidiram conhecer Gdansk, a antiga Dantzig, cujo centro histórico é um dos mais belos da Polónia. Sobre Walesa dizem só saber aquilo que aprenderam "mesmo agora no museu: que foi um herói da democracia".
O museu é o Europejskie Centrum Solidarnosci - ECS, o Centro Europeu Solidariedade, um enorme bloco cor de ferrugem. Mas se há uma exposição permanente, que mostra fotos e filmes a explicar a luta da Polónia para chegar à democracia, há também uma série de projetos que visam promover os direitos humanos e não só no país. "Somos uma instituição cultural que pertence à cidade e que existe para manter a memória do Solidariedade promovendo os seus valores", explica Anna Fedas, da secção de iniciativas cívicas. Sentada numa salinha do quarto andar, de cuja janela se vê o monumento das três cruzes, esta polaca oriunda de Wroclaw, no Sul, acrescenta que o ECS dá formação a ativistas de países como a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia, acolhe académicos, promove debates. "Há também uma ação sistemática junto das escolas e da população de Gdansk em geral, de modo a manter viva a ideia do Solidariedade. Temos, por exemplo, projetos para acolher refugiados na cidade, com cerca de cem pessoas a inscreverem-se como tutores de gente de fora que queira vir para a nossa cidade, que sempre foi muito aberta."
Depois de séculos a mudar de mãos entre polacos e alemães e por fim cidade livre de Dantzig (nome alemão) entre as duas guerras mundiais, a hoje 100% polaca Gdansk procura sublinhar o cosmopolitismo herdado do passado de cidade comercial e, até nas eleições, tem-se mostrado mais liberal do que o resto do país, como relembra a jornalista Wisniowska, que nota que nas legislativas de setembro "a Plataforma Cívica [PO] só ganhou em duas das 16 regiões polacas e uma delas foi Gdansk". Algum peso terá tido também o antigo líder do partido, e hoje presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk ser da cidade. "Tusk foi um dos académicos que desde o início se associaram à luta dos trabalhadores dos estaleiros. Foi o início da sua carreira política", conta a sindicalista Bartkiewicz. Mas na exposição sobre o Solidariedade surgem também fotos dos gémeos Kaczynski, que estiveram ao lado de Walesa na luta e que chegaram a ser presidente e primeiro-ministro ao mesmo tempo. Lech morreu num acidente aéreo em 2010, mas Jaroslaw manda hoje no PiS, vencedor das legislativas em outubro e acusado pela oposição de tentação autoritária e por Bruxelas de desrespeito pelos valores da União Europeia . Andrzej Celinsky, que foi um dos intelectuais de Varsóvia que há quase 40 anos vieram a Gdansk ajudar a fundar o Solidariedade e foi ministro da Cultura mais tarde, é um dos que criticam o atual governo, mas afirma estar certo de que "o povo polaco acabará por correr com Kaczynski e o seu partido".
Falta de química com Walesa
No segundo piso do ECS existe um gabinete reservado para Walesa, pois, diz Fedas, "é uma lenda, um homem que fez um grande trabalho". Mas formalmente o antigo sindicalista não tem um papel no centro. E, ao contrário do que alguns desejariam, continua a ter opiniões políticas, tendo apoiado as manifestações contra o governo por parte dos Comités de Defesa da Democracia, que se inspiram nos Comités de Defesa dos Trabalhadores que nos anos 1970 desafiavam os comunistas. Apesar da popularidade mundial, Walesa na Polónia já não tem grande influência (em 1995 não foi reeleito e em 2000, noutra tentativa de ser presidente, teve só 1,4%) e há quem ache que, sem o apoio dos intelectuais que o aconselhavam, fala do que não sabe. Bartkiewicz vai ao ponto de dizer que "entre Solidariedade e Walesa não há hoje química".
Os estaleiros continuam a trabalhar. Mas com menos gente do que no passado. Muitos dos operários são ucranianos. E se os barcos continuam a ser construídos, "hoje até torres eólicas se fazem em Gdansk", diz a funcionária do Solidariedade, que acrescenta que a cidade depende agora muito dos call centers, das empresas de tecnologia e muito, mas mesmo muito, do turismo.
"Estamos na época baixa. Março a outubro é que são os meses bons. Chegam turistas e mais turistas, nos últimos anos sobretudo escandinavos", conta Pawel Drzewieki, de 42 anos, que trabalha no Euro, um restaurante de cozinha típica polaca na rua Dluga, no coração de uma cidade onde nasceram Daniel Fahrenheit e Günter Grass e que na sua arquitetura herdada da Liga Hanseática se assemelha a uma pequena Hamburgo. Drzewieki, que esteve quatro anos a trabalhar em Inglaterra, agradece a Walesa a democracia e à nova Polónia o fazer parte da União Europeia. "A entrada na Europa foi boa. Ajudou o país a desenvolver-se e também nos deu a liberdade de partir se quisermos."
Wisniowska, como polaca e jornalista, agradece a Walesa o que fez pela democracia, e critica aqueles que dizem que cedeu muito aos comunistas em 1989. Diz gostar de viver numa cidade marítima, "de mente aberta", mas lembra que "a democracia no nosso país é jovem e tem de ser regada, todos os dias, como um planta bela mas frágil".