"Ó Maria Eugénia, acabei de fazer uma asneira, mas olha foi uma paixão, custaram oito contos!" Vindo da Galeria Diário de Notícias, então localizada no coração do Chiado, o advogado lisboeta Francisco Garcia (1915-1985) anunciava assim a sua mulher que se deixara seduzir por dois quadros de Júlio Pomar, gastando o que na altura (década de 60) era uma pequena fortuna. Os objetos de tão irresistível desejo tinham sido os óleos Procissão e Queimar o Judas, hoje duas das principais obras da coleção de arte contemporânea de Maria Eugénia e Francisco Garcia, que pode ser vista no Museu do Chiado até setembro deste ano e na qual, para além de Júlio Pomar, estão representados, entre outros, nomes tão importantes como Almada Negreiros, Vespeira, Escada, Joaquim Rodrigo, Cruzeiro Seixas, Menez ou Lourdes Castro..Desengane-se, no entanto, quem pense que esta galeria de notáveis dum período de ouro da arte portuguesa foi ditada pelo cálculo dos seus colecionadores. O historiador de arte José-Augusto França, de certo modo padrinho da coleção como adiante veremos, di-lo de forma clara em texto escrito para o catálogo (um dos seus últimos trabalhos antes de adoecer em 2016, tendo falecido no ano passado aos 98 anos): "Francisco Garcia não comprou quadros para emprego de capitais e ainda menos por especulação marcelista, que houve. Nos mais de 50 quadros que foi pendurando nas suas paredes, à Palhavã, há cerca de 30 nomes e nenhum desacerto de escolha, nas obras, a que não bastasse a importância da assinatura. Entre os seus quadros há evidentemente do melhor e do menos melhor, conforme, sempre, circunstâncias da aquisição.".O papel da afetividade nas escolhas artísticas dos pais é confirmada pelo mais velho dos três filhos de Francisco e Maria Eugénia, João Pedro Garcia, diplomata e antigo diretor do Centro Cultural da Gulbenkian em Paris, bem como do Serviço Internacional da mesma instituição: "Os meus pais nunca encararam a coleção como um investimento. Eram peças que eles amavam e muitas vezes estas aquisições constituíam um modo de ajudar os artistas, hoje nomes consagrados, mas na época jovens de muito talento ainda em busca de afirmação e de alguma estabilidade financeira. Devo dizer que nunca soube quanto é que estas obras valiam ou tinham custado. Só soube quando, ao preparar esta exposição, descobri os canhotos dos cheques que a minha mãe tinha guardado.".Tudo terá começado no final de década de 40, quando o jovem advogado Francisco Garcia ia a banhos à praia de Moledo do Minho e frequentava a casa de António Pedro (1909-1966), artista plástico, escritor e encenador, onde conheceu o historiador de arte José-Augusto França. São dessa época, aliás, as primeiras peças da coleção, duas obras de cerâmicas assinadas justamente por António Pedro. Tal convívio levaria Francisco a frequentar ateliers e galerias, a contactar com o que de mais vanguardista se fazia num país ainda dominado pela estética oficial da ditadura. Assim foram aparecendo na sua casa no centro de Lisboa as obras de Vespeira, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, amigos do colecionador, a que, ao longo dos anos (a partir de 1958 com a cumplicidade e colaboração da sua mulher, Maria Eugénia) se foram somando René Bertholo, Escada, Lourdes Castro, Eduardo Néry, Cruzeiro Seixas, Jorge Martins, Noronha da Costa, João Hogan, Alice Jorge, Carlos Botelho, Menez, Armando Alves, Nadir Afonso, João Vieira, Palolo e, como vimos, Júlio Pomar.."Nós crescemos no meio destes quadros", recorda João Pedro Garcia. "Estavam lá em casa, nas paredes, nunca estiveram em cofres ou em armazéns. Faziam parte da nossa vida quotidiana." Este contacto com a arte e com os artistas foi, aliás, uma constante nas vidas destes três irmãos, que acompanhavam os pais em visitas semanais às principais galerias de Lisboa dessa época como a 111 (de Manuel de Brito), a Buccholz ou a própria Sociedade Nacional de Belas-Artes. O convívio da família com os artistas era uma constante: "Lembro-me, por exemplo, do José Júlio, que morreu muito novo, ter sido decisivo na minha vida, ao aconselhar os meus pais a inscreverem-me, ainda pequenino, no Liceu Francês, onde ele era professor. Tornei-me francófono.".A omnipresença da coleção nas vidas destas cinco pessoas sobreviveu à morte do pai, em 1985, e perdurou até outubro do ano passado, quando Maria Eugénia morreu aos 88 anos, ainda a tempo de assistir (e colaborar) com os preparativos desta exposição no Museu do Chiado. No catálogo está, aliás, a longa entrevista que deu, com o filho mais velho, a Emília Ferreira, Lúcia Saldanha e Raquel Henriques da Silva. Por ela passa um tempo desaparecido e precioso em que se ia à Baixa de elétrico e em que toda a Lisboa ligada às artes se conhecia e apoiava mutuamente. Um tempo particular da vida portuguesa, que Raquel Henriques da Silva evoca no catálogo: "Nos vinte anos finais do Estado Novo - que, no caso em apreço. correspondem à vida de adultos do casal Garcia - havia, em Lisboa, uma burguesia esclarecida e cosmopolita, necessariamente anti-regime que vivia a cultura, fosse na literatura, na música ou na arte, como uma distinção: marcando precisamente que não pertenciam àquele mundo fantasmagórico.".O que agora se abre ao olhar ao visitante no Chiado são os 56 quadros originais colecionados pelo casal entre a década de 50 e 1975, quando a revolução transformou a sociedade e as suas prioridades: "O meu pai era um democrata - lembra ainda João Pedro Garcia - recebeu o 25 de Abril de braços abertos, mas houve que mudar de vida e ele tinha três crianças para criar". O último quadro a entrar na coleção data precisamente de 1975. Trata-se de A Praia, de Rui Filipe. A estes originais somam-se 27 das 70 gravuras da coleção, escolhidas pela crítica de arte Cristina Azevedo Tavares. Assim, ao leque de artistas representados somam-se outros não menos importantes, como os de Paula Rego, Cargaleiro, Jorge Barradas, Costa Pinheiro, Julião Sarmento ou Bartolomeu Cid dos Santos..Para Emília Ferreira, diretora do Museu, a possibilidade de expor esta coleção privada é uma ocasião feliz: "É um modo de mostrar ao grande público um conjunto de obras muito significativo, reunido ao longo de décadas por dois colecionadores privados, e de poder partilhar este gosto e este testemunho. Deste modo, retomamos uma política expositiva que já tínhamos de partilha de algumas das mais importantes coleções privadas existentes no nosso país." As vantagens pedagógicas falam por si: "Estamos perante um núcleo muito coeso de três décadas de criação da arte contemporânea da segunda metade do século XX português. O público reconhece os nomes dos autores representados, mas a verdade é que não conhecia estas obras em particular.".dnot@dn.pt