No fim da segunda guerra mundial a utopia da ONU incluiu, nos seus pressupostos ideológicos, o princípio, entre tantos proclamados ao longo dos séculos, do "mundo único", que visava conseguir um globalismo sem guerras..A experiência recente alertava para a urgência de pôr em prática o desígnio, mas as crises que teimosamente explodiram, depois de 1945, sobretudo no ameaçador período da chamada guerra fria, mostraram seriamente indispensável o método da cooperação multilateral, sem a qual a realidade vai tecendo interdependências inesperadas e perigosamente independentes até da legalidade projetada. O próprio normativismo assumido incluiu na Carta ambiguidades que facilitaram a atual divergência entre o critério do "equilíbrio de poderes" e o imperativo do respeito pela "justiça natural"..Trata-se da manutenção da antiga hierarquização aristocrática das potências, pela consagração do "direito de veto" de cinco membros (EUA, Rússia, França, Reino Unido, China), e dos embaraços postos à evolução que acompanhe a necessidade de responder à mudança da circunstância mundial, pela exigência do voto favorável de dois terços dos Estados membros, incluindo os votos concordantes dos membros permanentes do Conselho de Segurança (artigos 108 e 109)..Quando, neste inquietante 2019, mais de metade dos Estados membros não tem sequer possibilidade de enfrentar as agressões da natureza, quando se acentua o desequilíbrio entre os países ricos extrativos, e os que, pobres de recursos e de paz, veem a população enfrentar os perigos das emigrações que, por apenas exemplo, transformam o Mediterrâneo num cemitério e a fronteira EUA-México na linha vermelha do fim da esperança, tudo enfraquece as iniciativas, orientadas pela Utopia da fundação, que a ONU e as suas organizações desenvolvem, na área do desenvolvimento sustentado..A tentativa de construir uma governança justa do globalismo e da segurança humana, enfrenta-se sempre com recursos insuficientes para responder ao agravamento imparável e veloz da circunstância. Tendo presente a conservação aristocrática da hierarquia das potências, que não impediu Obama de assumir que se trata de uma organização "imperfeita mas indispensável", procurando orientar a sua política para o reforço do método da cooperação, foi com repúdio evidente que a Assembleia Geral ouviu o seu sucessor Trump proclamar o unilateralismo da sua política para repor os EUA na poética antiga caracterização de "Casa no Alto da Colina"..O facto de o globalismo ser uma realidade que desatualiza a circunstância da época da fundação, data em que cinco podiam considerar-se grandes potências, sem protesto do mundo que sofrera um desastre sem precedente, é evidente que os emergentes desafiam a hierarquia, que a descolonização, multiplicando os membros, atingiu o equilíbrio do sistema, que as crises económicas agudizaram os debates sobre "uma nova economia mundial", que pudesse levá-la a "erradicar a pobreza, a "fome" e as "desigualdades no mundo" até 2015..Programando ainda os esforços no sentido de erradicar, ou pelo menos reduzir, os arsenais nucleares, fazer respeitar o Conselho de Direitos do Homem, o Tribunal Penal Internacional, enfrentar as ameaças climáticas, mantendo o empenhamento de Obama, tudo não podendo até hoje evitar que se agrave o desequilíbrio entre exigências crescentes e recursos insuficientes, quando o unilateralismo o que faz é conduzir a que seja apenas um voto "acabar com a economia que mata" (Papa Francisco), tentando evitar que, em vez do diálogo enriquecedor do multiculturalismo da ONU, renasçam os mitos raciais com as desumanas consequências, avultando a islamofobia como corolário de quebra da paz, crise das social-democracias e democracias cristãs, e numerosos Estados libertados do colonialismo a serem governados pelo retomado modelo extrativo das antigas potências colonizadoras..O culto da personalidade renasce, agora acontecendo a "inidentidade" porque os meios de comunicação criam uma imagem dos dirigentes concorrentes que não corresponde necessariamente à realidade. São tempos de interrogação, como já foram chamados, em que a busca do equilíbrio, se possível, dos poderes, coloca em suspenso responder às exigências da justiça natural..A recente autoparalização do Tribunal Penal Internacional, que declara estar impedido de funcionar por recusa de colaboração de todos os Estados, é um aviso. Mas foi um aviso mais inquietante o facto de o dirigente de uma das mais importantes potências distinguidas com o privilégio de veto, ter festejado a decisão como um feliz acontecimento. Foi o desrespeito da "justiça natural" que levou à necessidade da retroatividade das leis para Nuremberg. A festejada importância da decisão do Tribunal Penal Internacional obriga a meditar nesse precedente..A anunciada visita do Papa Francisco a Hiroshima e Nagasaki não vai apenas lembrar o passado, vai avisar dos riscos do presente.