A Festa do Avante! este ano é luta e mostra que a luta pode ser uma festa
Foi fácil estacionar, não havia filas para entrar, nem para quase nada, muito menos gente do que nos outros anos, é claro, mas mais do que esperava, os pavilhões mais abertos, menos paredes, dispensadores de álcool-gel por todo o lado, máscaras, muitas máscaras, colocadas, camaradas de colete refletor a higienizar constantemente mesas e cadeiras, plásticos transparentes esticados nos balcões a separar quem serve de quem é servido e as cadeiras, os milhares de cadeiras em frente aos três palcos, rigorosamente dispostas para cumprir a distância de segurança exigida.
De resto, tudo igual. Chegar à Quinta da Atalaia na primeira sexta-feira de setembro, com o sol a descer, é como voltar a casa. Não se explica muito bem. Entra-se ali e está-se em casa. Os sons e as cores da festa iguais, a receberem-nos. Só que hoje (ontem) mais tranquilos, menos agitados. E eu, que estou a ficar velha, se fosse egoísta, era capaz de me habituar, e até preferir, uma festa assim.
Ao estar ali, ao encontrar, emocionados uns e outros, gente que só vejo uma vez por ano, ao perceber (não sei como é que ainda me espanto) a capacidade organizativa e a disciplina dos comunistas que fazem a festa, ao ver aquela gente a saltar para dançar a Carvalhesa quando se ouviu o estrondo que às 21.30 abre o palco 25 de abril e dançá-la em todo o lado da festa, agora afastados, em pequenos grupos, e no fim palmas e o grito PCP, PCP, PCP, não pude deixar de me emocionar. E de me envergonhar por quase não ter estado lá. Por medo.
Há um mês ou dois tinha decidido que comprava a EP [Entrada Permanente], mas não vinha à Festa. Os meses de confinamento e a overdose informativa, de que sou não só consumidora como produtora, sobre a pandemia em Portugal e no mundo, tinham-me refém e achava que realizar-se a Festa do Avante! este ano era pouco prudente.
Mas depois veio o verão e as praias e as esplanadas e os concertos e os cinemas e os teatros e os centros comerciais e as cerimónias religiosas e as feiras do livro e a noção de que, depois do primeiro embate, é possível continuar-se a viver, apesar da pandemia, cuidando que nos protegemos dela. O ataque cerrado, violento, histérico, quase irracional contra a Festa do Avante e o PCP a encher as redes sociais e os espaços noticiosos de televisões e jornais fez o resto e deu-me a certeza de que tinha que ir e ontem, quando entrei na festa, perdi qualquer réstia de medo que tivesse.
O medo que os comunistas nunca têm. É difícil meter-lhes medo. Os tipos arriscaram a vida durante 48 anos para devolver a liberdade aos portugueses. Viveram clandestinos, foram presos, torturados, mortos, mas resistiram sempre. Como resistem agora. Com maturidade e responsabilidade.
"Já que temos a chance de estar cá, vamos fazer o melhor que sabemos. Mesmo sentados podemos dançar", dizia a angolana-são-tomense Anastácia Carvalho, que abriu o concerto "Som e vozes de África contra o racismo", no Palco 25 de Abril. O público, que ocupava ordeiramente cerca de metade das duas mil cadeiras da plateia ao ar livre correspondeu.
"Afinal, sabemos estar juntos", gritou o cantor moçambicano Carlos Neto, na saudação à Festa do Avante!, quando subiu ao mesmo palco. Seguiram-se-lhe o angolano Gerson Marta e a cabo-verdiana Maria Alice, mas já não os ouvi, porque rumei ao palco 1º de Maio, onde cantava Aldina Duarte.
Antes de entrar no espaço ao ar livre reservado ao público, foi-me pedido que desinfetasse as mãos no dispensador de álcool-gel colocado à entrada. A lua mesmo em frente, o rio ao lado, a voz da Aldina Duarte. Já não teria saído dali se não fosse um som estranho que daí a bocado vinha lá do fundo. Era de um filme que passava no Cineavante, uma tela gigante virada para um anfiteatro ao ar livre.
"Hoje não há nada que me faça parar de cantar", ainda ouvi dizer, ao longe, a Aldina Duarte, quando me dirigia para o Espaço Central onde decorriam dois debates, bastante participados, um sobre trabalho e outro dedicado ao tema "No segundo centenário de Friederich Engels - a luta ambiental e a luta de classes". Acontece tudo ao mesmo tempo ali.
Ao deambular pela festa, espanta-me sempre a diversidade de gente. Este ano ainda mais. Apesar do medo criado à volta do evento, ainda há bebés de colo e em cadeirinhas, há miudagem, há pré-adolescentes e adolescentes, como os meus filhos, pós-adolescentes e malta da minha idade, malta da idade do meu pai (a geração de Abril) e mais velhos. Ir é resistir e isso é bonito.
Na rampa que desce para o palco 25 de Abril, uma mãe dança com as filhas pequenas, tão felizes, os ritmos africanos que tocam lá ao fundo e naquele momento está a festa toda. A alegria, a liberdade, a resistência.