A festa de Dilma: uma banda sonora

Na noite em que o Brasil elegeu a primeira mulher presidente, as ruas de Cumbuco, no Ceará, viraram forró
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Toc toc toc. Oito da noite de domingo e agora é oficial: Dilma Rousseff foi eleita primeira mulher chefe de Estado do Brasil. No Cumbuco, aldeia de pescadores cearense, começa a festa. Edson Peixe, pescador, não foi ao mar e está ali agarrado a duas metades de coco seco que não encaixam, mas adiantam ritmo para a noite como se fossem castanholas. Vai cantando também. Toc toc toc, "Dilma presideeeeente".

O vento amainou, toda a gente veio desaguar à rua. Na praça central do Cumbuco os botecos despejam chope, se não houver dinheiro paga-se amanhã, que por enquanto é tempo de celebrar. Do carro de Bruno Matias eleva-se o volume da música. Nas traseiras tem um autocolante do Serra, afinal o rapaz é tucano. "Mas olha, agora até fico contente que tenha ganho a mulher." Então? "A festa é melhor. Ganhando o Serra ia ser só bossa nova, bem calminho. Mas deu Dilma e olha lá o forró."

A televisão da tasca da dona Alice avisa a percentagem final, ainda bem que não é preciso som para ler a numerologia dos resultados. A candidata do PT ficou com 56,05%, uma dúzia de pontos de avanço do rival. Bruno propõe ir buscar mais música, pede para dirigirmos o carro que ele quer ir sentado à janela. Siga com som no máximo.

Nem 200 metros galgados aparece a patrulha da polícia, que manda parar a viatura. Pede para sairmos. Obedecemos. E então o agente vai ao bar da esquina, compra duas cervejas de lata e oferece uma à comitiva em festa. Dilma ganhou e ele também quer celebrar. Brinda-se e segue-se.

No bairro dos índios há djambezada a ditar ritmo. Glória Alcântara convida para entrarmos em casa. A televisão está no quarto do filho e na sala há um móvel de madeira sobre o qual está uma aparelhagem Toshiba, comprada a prestações.

"Com o Lula a gente teve crédito. Agora temos música, televisão e geladeira. Mas o melhor é a música." Ela vive da reciclagem, recolhe plástico que amachuca e vende a peso: o quintal é um oceano de garrafas vazias. Danilson, filho mais velho, 32 anos, é jardineiro e ajuda em casa. A mais nova, Beatriz, 16, está a estudar e sonha ser advogada. Votaram todos na candidata do PT. Danilson ri. Num instante resgata um CD de tecno-brega à gaveta e enche a divisão de pum pum pum. Os vizinhos ouvem, assomam à janela e Tiago Alcântara, primo mais novo, da casa ao lado, é puxado para a sala, transformada em pista de dança. Dona Glória ri ao ver os dois rapazes abraçados. "Casa pobre mas alegre, viu?"

A praça central do Cumbuco, entretanto, encheu-se. Bruno, que fora a casa pescar musicalidade, disputa decibéis com uma dúzia de autorádios. É confusão sonora, mas com denominador comum: ritmo de forró. O chope continua a correr e a calçada é palco para baile agarradinho.

Num canto da praça, o mercadinho da dona Ivone avia cerveja em lata a real e meio até não sobrar mais. Também tem música, Shakira a clamar que chegou a hora de África. Ela com o neto ao colo, dançando ao som do volume altíssimo e o bebé impassível. "Ela devia cantar It's Time for Brazil, não é mesmo? Pelo menos hoje." E então começa a inventar uma versão danada de waka waka brasileiro. A nora ri.

Em frente, sentado num degrau das escadas, Juca Gomes também musica a noite, mas ele votou Serra e por isso prefere arrancar um chorinho ao violão. "Essa eleição é a maior desgraça que podia acontecer", abana a cabeça e começa a dedilhar o Tico- -tico no fubá.

De repente uma explosão, alguém disparou um foguete para o ar. O barulho repete. Vzzzzzzzzz boom, seguido de aplauso. O polícia que ofereceu a cerveja observa e bate o pé. Danilson veio dar um pulo ao centro e agora rodopia com Dona Glória. O carro de Bruno emudeceu-se, gastou a bateria inteira. O Cumbuco segue suado a dança e o forró vai cantar na praça até ao primeiro raio de sol.

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