A "ferida pós-colonialista em Portugal" testada por Kapuscinski

Estreia amanhã a animação<em> Mais um Dia de Vida</em>, sobre a epopeia do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski em plena Revolução de Angola. Vai provocar debate em Portugal? O realizador e um dos protagonistas respondem.
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A animação Mais um Dia de Vida é um espetáculo documental misturado com elementos de cinema biográfico. Mas é animação? Sim. Mas tem imagens de arquivo? Sim. E tem material de entrevistas feitas agora em imagem real? Sim. E mais, levou o público basco do Festival de San Sebastián a dar-lhe o prémio popular. Chega ao mercado português amanhã.

Mais um Dia de Vida, de Raúl de La Fuente e Damian Nenow, co-produção entre Espanha e Polónia, estreia em Portugal depois de uma passagem pela seleção oficial do Festival de Cannes. O filme relata a odisseia do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, que se tornou figura marcante na Revolução de Angola, em 1975, ao ser peça essencial na forma como cobriu a dramática guerra civil e o eminente ataque das forças sul-africanas.

O guião é baseado no livro homónimo do jornalista, estando a intriga interligada com declarações de alguns intervenientes, em especial Farrusco, um comandante militar do MPLA. Ao todo são 60 minutos de animação e 20 de imagem real, o mecanismo que Raúl de La Fuente e Damian Nenow encontraram para narrar a viagem do jornalista polaco ao coração do conflito armado, sendo o único jornalista internacional estacionado em Luanda que se atreveu a sair da capital.

"Não sei se há ainda uma ferida pós-colonialista em Portugal, mas estou feliz por ter havido uma distribuidora portuguesa que tenha apostado neste meu filme! Foram valentes... Sinto-me honrado, até porque não estava à espera que em Portugal alguém quisesse estrear. Não tenho mesmo ideia de como será a reação dos portugueses ao filme, mas deduzo que o povo português possa vir a ter uma abertura de mente grande. Aliás, esta história nasce aqui, com a Revolução dos Cravos", diz-nos o realizador espanhol Raúl de La Fuente.

Ele está numa mesa do foyer do Cinema Ideal, em Lisboa, onde esta semana teve lugar a antestreia do filme, ainda integrada no bem sucedido ciclo da Casa da Imprensa. Ao seu lado está o mítico Farrusco, português alentejano que vemos no filme animado e também em carne e osso, ora a falar castelhano, ora português. Este comandante do MPLA é descrito como um herói de guerra, um soldado sem medo e uma espécie de figura romântica. Certamente nunca imaginou estar décadas depois nesta situação: "Fiquei muito impressionado quando vi o filme pela primeira vez", conta com a voz algo frágil e prossegue: "finalmente tenho aqui uma condecoração que nunca ninguém me ofereceu! Estar numa história destas é fazer parte de uma imortalização de um facto. Ninguém pode desmentir esta história. Quem vir este filme ou ler o livro do Kapuscinski e não acreditar no que é relatado só pode fazer uma coisa: falar com quem ainda está vivo e viveu estes episódios e perceber o quanto foi difícil para o povo angolano e para o português"

Mais um Dia de Vida tem uma palavra que vai ficar na cabeça dos espetadores: "confusão". Uma confusão que ilustra o caos de um país dividido pelo conflito entre as forças da UNITA e do MPLA, bem como o clima da Guerra Fria entre os russos e os americanos, com a intervenção de Cuba e da África do Sul à mistura. Para o cineasta espanhol, interessava-lhe sobretudo ser fiel ao olhar de Kapuscinski: "quis mesmo seguir o olhar dele, claro que depois complementado com o olhar de Farrusco, da guerrilheira Carlotta e do jornalista angolano Artur. Se é tendencioso ou não, desconheço". "Não, não é tendencioso", afirma Farrusco.

Meio a brincar, Farrusco lembra que o resto da guerra poderia dar muitos filmes, em especial o seu ferimento quase mortal que o deixou em coma e a forma como os mucubais o ajudaram na Serra da Leba antes de conseguir conquistar Lubango das mãos dos sul-africanos, já em 76.

A animação do filme tenta integrar ideias estéticas de películas de imagem real. Para os puristas da animação vai ser um ai-jesus, mas pelas palavras do realizador sentimos que é para o lado onde dorme melhor: "quisemos fazer um filme de animação que não se parecesse com um filme de animação. É como se fosse câmara à mão. Enfim, é realmente um filme de guerra com um movimento muito humano, orgânico. Queríamos que fosse uma obra muito humana. Se pusemos figuras reais foi para trabalhar isso mesmo, queríamos captar veracidade e emoção".

Para já, ainda não há data de estreia do filme em Angola, mas de La Fuente garante que está a trabalhar nisso mesmo e quer uma data muito, muito em breve. E aí como será também a reação?

"Responde tu que és angolano", pede o realizador ao militar que nasceu em Portugal e preferiu lutar para o povo pelo qual se apaixonou. Farrusco respira fundo e diz que é imprevisível o impacto de Mais um Dia de Vida em Angola: "provavelmente vai provocar discussão e debate político". Claro que podemos ter pessoas que têm ressentimentos e traumas, sobretudo pessoas que podem dizer que o filme não vale nada pois não são vistas lá". Está a falar de pessoas ligadas à UNITA? "Sim, a UNITA não tem protagonismo aqui... Eu acho que o Kapuscinski deve ter querido chegar à fala com comandantes da UNITA mas não tinha qualquer segurança para passar para o outro lado do asfalto. Poderia ter sido morto ou desaparecer!"

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