"A Feira da Ladra é a mãe das feiras, vem toda a gente"

O mercado voltou para os que têm banca fixa, depois de pararem a 16 de janeiro. Os vendedores protestam por só terem sido informados ao fim do dia de segunda-feira. Mas muitos apareceram, também clientes, longe de grandes vendas.
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A paragem, desta vez, foi de quase três meses: feiras sem ser de alimentação não puderam abrir durante o confinamento. Foi o que aconteceu à Feira da Ladra. Nesta terça-feira tornou-se a primeira a recomeçar no distrito de Lisboa.

Os feirantes só tiveram a informação oficial ao final do dia de segunda-feira, o que é motivo de protesto pelo aviso tardio, mas encaixaram antiguidades, velharias, roupas, livros, discos, loiças e outros apetrechos e rumaram até ao Campo de Santa Clara, em Lisboa. Alguns já lá estavam às 06:00. Ou não fosse "a Feira da Ladra a mãe de todas as feiras".

Montaram cedo a tenda, menos os da venda ocasional que ainda não é permitida. Alguns lugares vazios e clientes. Estes estão maioritariamente à procura de pechinchas, queixam-se os vendedores. Um ou outro compra um artigo que lhe possa fazer falta, também colecionadores e negociantes de antiguidades. Os estrangeiros, agora, são os estudantes.

Amigos da feira, dois homens conversam enquanto os compradores não aparecem. À pergunta: "Como está a venda?", responde Carlos Martins, 59 anos, era técnico de palco quando se dedicou à venda, há oito anos. "Está mal". Logo outro comerciante se junta e diz: "Põe força nisso, está muito mal". É António de Almeida, 70 anos, que já trabalhou na Comissão Europeia. António marca presença na Feira da Ladra há 20 anos, também na de Paço de Arcos e de Algés, negócios de fim de semana que dá para conciliar com o mercado de terça-feira e de sábado no Campo de Santa Clara, em Lisboa.

Qual é a melhor? "A Feira da Ladra, é a mãe de todas as feiras, vem cá toda a gente", responde António. Agora já são quatro à conversa, com Pedro Lucas, 76, na feira há dez anos, quando deixou de ser camionista, e José Santos, 66, que esteve ligado ao mundo dos jornais e ali vende há mais de 15 anos.

"Vende-se pouco mas sempre se vende alguma coisa", justifica o António, dando o desconto de ser o primeiro dia, apesar da "má comunicação" sobre a abertura da feira. Carlos mostra a mensagem que recebeu no telemóvel às 19:29, dando conta que poderia regressar no dia seguinte. "Foi a esta hora que soube oficialmente que a feira ia abrir para os vendedores não ocasionais, somos nós que pagamos uma renda mensal. As pessoas nem tiveram tempo de se preparar e, muito menos, os clientes". Acrescenta o António: "Não é coisa que se faça, informar na véspera ao fim do dia". Os vendedores fixos pagam cerca de 10 euros por m2.

Carlos vende usado, tudo a um euro, é dos que tem mais procura. Pedro e António velharias, antiguidades, objetos de coleção. Um par de apliques de bronze dos séculos XVII e início de XIX, dourados a fogo, são as peças mais caras, 600 euros o par, mas também tem artigos a um euro.

Os turistas já foram muitos, pelo menos em número, agora são mais os portugueses a comprar. António prefere os portugueses, diria colecionadores: "Os portugueses são o nervo da guerra, depois, há os estrangeiros e esses vêm por causa do folclore". Também depende do que cada um vende.

Pedro Lucas não se arrepende de ter trocado os camiões pela venda de artigos em segunda mão. "Encontramos todo a espécie de gente, dos vendedores aos compradores.
José também vende em Algés, Paço de Arcos, Oeiras e na Avenida da Liberdade, sublinha que a da Ladra é a melhor. "É a feira das feiras, a maior, também é a mais antiga".

José Rebelo, 75 anos, tem um bom lugar, mas a banca já foi muito maior. "Agora não guio e não posso trazer muita coisa", justifica. Tudo o que expõe parece caber em dois sacos que carrega durante a viagem, de autocarro desde São Bento, onde vive. Às 07:00 já estava no recinto do Campo de Santa Clara, Vende jornais antigos (portugueses e brasileiros), medalhas, artigos militares, um gosto que lhe ficou desde os tempos em que esteve na Marinha. Começou a vender na feira "depois do 25 de Abril". E, nesta terça-feira, vendeu um Diário de Notícias de 1921 por três euros.

Ao lado, está a Filomena Gomes, 71 anos, vende roupa em segunda mão, desde lençóis e cobertas até camisas e calças. "Não há turistas, os estrangeiros agora são os que vêm estudar {Erasmus], ainda agora uma menina me comprou umas calcinhas. Só com os portugueses não nos safávamos", assegura. Tornou-se vendedora depois de se reformar da profissão de "mulher a dias", há 20 anos. "É para juntar alguma coisinha à reforma, 170 euros por mês não dá para nada, só a eletricidade é um dinheirão".

Três dinamarquesas entraram no recinto pelo lado da Igreja de São Vicente de Fora, vão a meio da feira e nos sacos Frederica Juel e Stephanie Madsin levam duas taças. Só Mathilde Bjerre ainda não se estreou a comprar. Têm todas 29 anos, partilham um apartamento e fazem uma pós-graduação em Portugal, que começou em fevereiro e termina em agosto. Estão a adorar a feira, um tipo de mercados que costumam frequentar na Dinamarca. Dizem que este é especial: "O sítio é bonito, há muitas coisas diferentes e as pessoas são simpáticas", justificam.

Só Mathilde pensa regressar à Dinamarca quando acabar o curso. Frederica e Stephanie não têm data para deixar Portugal e até pensam em aqui viver definitivamente. "Visitei várias vezes o país, gosto muito, tem um bom ambiente", justifica Stephanie.

Elsa Simões, 50 anos, é a única que não se queixou ao DN das vendas no primeiro dia da Feira da Ladra. "Nem consegui tomar o pequeno-almoço, quanto mais almoçar. Acabei por não fazer o teste à covid, disse que ia mas não consegui arranjar tempo", conta.

Neste primeiro dia, a Câmara Municipal de Lisboa, instalou um serviço de testes ao SARS-CoV-2 para os feirantes, entre as 09:00 e as 13:00. Os resultados foram saindo ao longo da manhã, informação que todos partilhavam depois.

Passa das 13:30, Elsa tem estado sempre a atender clientes e que renderam faturação. A filha, Ana Catarina, 24 anos, faz uma pausa para o almoço. A mãe diz que ela não gosta muito, ao contrário de si. "Gosto de ser feirante porque tenho uma grande liberdade, para tudo, desde as horas e os dias em que trabalho até às coisas que vendo", justifica. Costuma comprar recheios de casas, também a outros vendedores, às vezes faz trocas com os clientes. Vende loiças, brinquedos, LP"s, bijuterias, malas, fotografias, postais, em resumo, vende de tudo, mas o topo das vendas são as fotos antigas.

"Este primeiro dia correu-me muito bem e não trouxe muita coisa, também já passava das 19:00 quando nos informaram que ia abrir. Isto está fraquinho comparando com os bons dias, eu vendi muito porque trouxe muitas encomendas. Vendi bem, vendi bem, não me posso queixar".
Explica que durante "a primeira quarentena", há um ano em que a feira também foi suspensa, começou a vender pela Internet. Desta vez, seguiu outra via: ficar com os contactos dos clientes e informá-los sempre que tinha um artigo que os interessasse. E, esta terça-feira, a maior parte das vendas foi de encomendas.

Elsa monta a banca às terças e sábados no Campo de Santa Clara, no primeiro domingo do mês em Oeiras; no segundo, nas Caldas da Rainha; no terceiro, em Paço de Arcos e, no quarto, em Algés. "Na Feira da Ladra vende-se melhor, há muitos clientes, em segundo lugar ao nível das vendas está Caldas da Rainha", diz.

Um dos clientes assíduos é Sérgio Marques, 49 anos, artistas plástico como complemento à profissão na área cinematográfica. "A Elsa é a melhor", afirma, sublinhando que esta é uma banca que não falha. Mora perto do Campo de Santa Clara, que é quase o seu quintal, portanto, está lá sempre. "Venho à procura de tesouros e que ninguém sabe que existem", brinca.

Quando lhe perguntamos se é um colecionador informado, responde: "Não, são tesouros para mim".

Acaba por comprar umas cópias de fotografias antigas, mas o seu interesse não são as imagens. Compra para recuperar as molduras e expor aí as suas obras.
Elsa é vizinha de António Lopes, 67 anos, que vem da aldeia da Igrejinha, a 15 Km de Évora. "Tenho de sair muito cedo par aqui estar de manhã, às vezes às 06:00. Chego a vir de véspera e durmo na carrinha, tenho lá um colchão. Tive vários trabalhos antes de começar a vender em feiras, há 30 anos. Gosto muito disto, trago as minhas coisas para vender, encontro outras pessoas. Vendo loiças, ferragens, garrafões, antiguidades", conta.

Percebe-se que António tem muitos anos de feira e visto como um perito, os colegas pendem-lhe opinião sobre os artigos. É ele e o cão Óscar, o seu grande companheiro. Tem carrinhos a 1 euro, uma das peças mais caras é um almofariz em pedra por 250 euros. Na sua banca também se pode comprar um televisor a preto e branco ou o George (dos Beatles) em loiça, cada um por 25 euros. Também vende em Évora e em Estremoz, que troca com a da Ladra porque calha ao sábado. "Agora, está a vender melhor. E gasto menos dinheiro na viagem".
No meio de tanto objeto usado, velharias e quinquilharias, há artigos em primeira mão, nomeadamente meias e roupa interior, que nunca falta neste tipo de mercados. Também roupa e calçado.

Subasso Parsotano, 47 anos, um moçambicano que veio para Portugal com os pais, tinha dez anos. Pais que decidiram montar um negócio por conta própria e começar a vender em feiras. Cresceu nesse meio e nunca de lá quis sair, agora sozinho. . "Só vendo artigos novos: bijuteria, incenso, lembranças, artigos de clubes, vou vendendo, mas também não são coisas caras, a margem é pequena", explica.

Vive em Massamá, levanta-se bem cedinho, nunca teve outra vida. "Ser feirante é ter liberdade, se está mau tempo ou não me apetece, não venho. Temos muita liberdade e é sempre diferente". Vende mais incenso e souvenirs, também primeiro dia. "Dá para a bica".

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