A febre do policial: crimes e escapadelas televisivas
Não percebo porque é que não estás mais fascinado com isto. Quer dizer, podíamos estar a morar ao lado de um assassino!" O comentário é de Diane Keaton, para um amedrontado Woody Allen, em O Misterioso Assassínio em Manhattan (1993), e resume bem o espírito nova-iorquino de excitação com os crimes de bairro. De livros a séries, passando por filmes, documentários e podcasts, o chamado true crime tem vindo a impor-se, sobretudo nas plataformas de streaming, e com ele muitas variações de narrativas policiais. Uma tendência que se consolidou com os hábitos necessariamente mais caseiros dos últimos dois anos: o espectador-detetive é uma realidade tida em conta por muita da ficção que se produz hoje em dia.
Mare of Easttown (HBO), Homicídios ao Domicílio (Disney+) e Landscapers (HBO) são apenas três bons exemplos do género, títulos do ano passado, cada um com as suas nuances mais dramáticas ou mais cómicas, cientes desse bichinho detectivesco que há em nós. Nas últimas semanas, as estreias de algumas séries no streaming confirmam que o policial está bem vivo... e com diferentes facetas.
Adaptada dos best-sellers de Peter James, esta produção britânica está na categoria mais clássica das histórias de detetives, com um protagonista experiente, audaz e melancólico, como se quer. Roy Grace (John Simm) é um reputado detetive de Brighton que no início do primeiro episódio não atravessa o melhor momento da carreira, depois de ter assumido em tribunal que consultou um vidente para o ajudar numa investigação. Aos 46 anos, com o talento desaproveitado em trabalho de secretária (departamento de casos arquivados), caído em desgraça pela mão da imprensa, e ainda sofrendo com o desaparecimento da esposa, há seis anos, ele é resgatado da monotonia pelo colega Glenn Branson (Richie Campbell), que precisa da "velha magia" de Grace para resolver o caso de outro desaparecimento: um jovem promotor imobiliário que parece ter-se evaporado na sequência de um acidente rodoviário, na noite da sua despedida de solteiro. Isto envolve também a estranha ausência do padrinho de casamento e parceiro de negócios, que alega um voo atrasado... Para quem sofre de claustrofobia, desaconselha-se este episódio, porque a certa altura haverá alguém preso dentro de um caixão funerário, e a experiência vista do interior da urna não é agradável.
Desenvolvido para a televisão por Russell Lewis, o criador de Endeavour (série também disponível no Disney+ que retrata os primeiros anos da carreira do famoso Inspetor Morse), Grace põe a atmosfera em movimento através de uma montagem inteligente e ritmada que cumpre um tempo justo de revelação: cada episódio tem hora e meia. Para além disso, a primeira temporada só apresenta dois episódios - correspondentes a dois romances -, sendo o segundo sobre um esquema macabro na dark web. A intercalar a ação, os planos cinzentos da cidade litoral inglesa dão um toque particular à angústia discreta do detetive, que tenta manter-se no cargo apesar da pressão constante para se mudar para outra cidade. "És Brighton dos pés à cabeça", diz-lhe a chefe, e essa especificidade do herói é a especificidade da série.
Baseado noutro sucesso literário, o da personagem criada por Lee Child, Reacher vem "corrigir" a desilusão dos fãs que, depois de dois filmes, nunca conseguiram vislumbrar na pequena estatura de Tom Cruise o Jack Reacher descrito nos livros: um homem muito alto, corpulento e de poucas palavras. Alan Ritchson é então o ator que enche as medidas do papel, não só em altura como em massa muscular, exibindo uma silhueta imponente que fala por si - logo nos primeiros minutos, sem precisar de proferir uma sílaba, trava uma situação de violência doméstica limitando-se a fixar os olhos do agressor à porta de uma cafetaria. Neste episódio piloto de uma primeira temporada que adapta Do Fundo do Abismo (o romance inaugural dos 26 da saga), Reacher acaba de chegar de autocarro a uma pequena cidade fictícia na Georgia, Margrave, onde não demora muito a ser detido por um homicídio que não cometeu.
Uma vez na esquadra, começamos a perceber que os dotes do herói não são apenas físicos. Reacher é o homem que se torna fundamental para resolver o quebra-cabeças dos sucessivos assassinatos que chocam a comunidade. Basicamente, temos um Sherlock Holmes com bíceps de parar o trânsito. Alguém capaz de combinar instintos apurados e finura de observação (sublinha sempre que "os detalhes importam") com a força bruta, quando necessário. Reacher aumenta assim a dose de ação no registo detetivesco, sem permitir que uma coisa anule a outra. Um equilíbrio garantido pela pena de Nick Santora, que ao longo de oito episódios vai adensando o perfil do protagonista, um ex-polícia militar - ainda não o tínhamos mencionado -, entre o brilhantismo musculado e a sensibilidade. Neste último aspeto, veja-se como enfrenta o dono de um cão, invadindo-lhe a propriedade só para encher a taça de água quando vê o animal sedento, ou a suave vibe romântica que tem com uma agente da polícia local (Willa Fitzgerald). Reacher está acima da sua sinalética comercial: o cartaz sugere um herói de ação, mas há mais deleite sherlockiano aqui do que se julga. Uns ossos partidos são ossos do ofício.
E agora para algo completamente diferente... Pense-se na investigação de um crime como um concurso apalermado. Murderville é uma versão americana da sitcom britânica Murder in Successville (2015-2017). Cada episódio conta com celebridades convidadas para resolver casos de homicídio ao lado de um detetive de pouco préstimo, Terry Seattle (Will Arnett), que orienta os "estagiários" no processo de investigação. O formato, de meia hora, é sempre o mesmo: três suspeitos, três interrogatórios, e no final o convidado tem de apontar o dedo ao culpado, com base nas pistas que recolheu. Naturalmente, o grau de diversão varia conforme os convidados e as situações a que são expostos. Com uma galeria que inclui Conan O"Brien, Marshawn Lynch (jogador de futebol americano), Kumail Nanjiani e Sharon Stone, entre outros atores - num total de seis episódios -, a comicidade atinge pontos altos, em particular, no caso a cargo de Lynch, em que os suspeitos são trigémeos, e Nanjiani, que tem dificuldade em controlar o riso perante os pedidos absurdos do detetive Seattle. Quanto a Sharon Stone, a levar com os toscos avanços de sedução de Will Arnett, só quer despachar o mistério, porque esta não é a praia dela.
No lado oposto da comédia, mas na mesma plataforma (Netflix), encontra-se Catching Killers, uma série documental em que detetives, e outros envolvidos, relatam a fundo as fases de investigação de alguns dos casos mais impactantes de serial killers dos tempos modernos. Logo no primeiro episódio analisa-se o caso de Gary Ridgway, conhecido como o assassino de Green River, condenado a prisão perpétua por 49 homicídios - todas as vítimas eram mulheres. Uma marcha lenta de investigação e condenação que demorou quase 20 anos (Ridgway foi preso em 2001), dependente de avanços tecnológicos que não permitiram confirmar mais cedo o ADN do suspeito. Estamos a falar de muito investimento pessoal, de processos que marcaram a vida de quem se dedicou a eles, e do peso da memória. Fica à vista a dificuldade que os entrevistados têm de controlar as lágrimas a cada passo da narração na primeira pessoa.
Mas Catching Killers procura também analisar a mente dos assassinos (aqui é o seu lado Mindhunter), estudando os padrões assinalados pelos procedimentos dos investigadores... e as surpresas. Como aquela que se conta no segundo episódio sobre a assassina em série Aileen Wuornos, que Charlize Theron interpretou no filme Monstro (2003), de Patty Jenkins. Este é o tipo de série que põe os olhos na história e na expressão realista do true crime para transmitir os métodos e os sentimentos que se misturam numa experiência tão envolvente quanto perturbadora. A frieza do detetive é uma invenção de ator. Na vida real, ninguém sai ileso do contacto com a morte dos outros.
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