A Europa, o bloco central e o futuro

Os nossos representantes e demais instituições estão a fazer o melhor que sabem e podem, mas nada evitará uma quebra de confiança.
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1 A resposta da União Europeia a esta crise vai decidir o futuro do projeto europeu e os primeiros sinais estão longe de ser os melhores. O desprezo criminoso a que foi votada a Itália, as hesitações na última reunião do Eurogrupo e a reunião do Conselho Europeu que foi um claro fiasco e teve mesmo, nas palavras de António Costa, declarações repugnantes de um dos miseráveis do costume, são provas cabais disso.

Os nacionalistas e antimultilateralistas estão a ganhar. Um verdadeiro paradoxo, numa altura em que nos pedem solidariedade, e a estamos a praticar de forma admirável, as consequências futuras serem exatamente as opostas a esse espírito. A crise vai ser assimétrica dentro das comunidades - todas são - e entre os países da União Europeia.

O cinismo e a mentira do "viver acima das possibilidades" levaram, na crise de 2008, os países mais pobres da UE à humilhação e à condenação a uma austeridade moralista que deixou ainda mais frágeis os países que já o eram, e dificilmente deixarão de o ser, nomeadamente os seus serviços públicos - conduziu, também, ao estado em que o nosso Serviço Nacional de Saúde teve de enfrentar esta pandemia.

Nesta não há qualquer desculpa desse género. Se a UE não reagir de uma forma unida, se o Tribunal Constitucional alemão continuar a condicionar os mecanismos de apoio global, se não apoiar os seus membros consoante as suas especificidades e circunstâncias, se todos não se responsabilizarem pelas dívidas de cada um, saberemos que os nacionalismos venceram e o projeto europeu não passa de uma gigantesca farsa. Daí até enormes crises políticas dentro de fronteiras e conflitos graves entre países será um passo de anão. Há quem esteja esquecido do que eram as guerras na Europa.
O que estamos a passar e o que aí vem será sempre muito difícil, mas se ficarmos sozinhos levaremos décadas para sequer regressar ao ponto onde estamos hoje. Não só nós. Os custos serão diferentes para cada um, é certo, mas enormes para todos.

A consequência da desunião dos países europeus será a morte da UE. Mas, mais do que isso, além de uma crise económica teremos um enorme retrocesso civilizacional.

2 Segundo um estudo feito pelo Instituto de Ciências Sociais para o Expresso, os portugueses, até agora, confiam e estão satisfeitos com a forma como as instituições estão a lidar com a crise que estamos a enfrentar. Nomeadamente, com a ação do primeiro-ministro que apresenta um nível de aprovação por parte de todos os quadrantes políticos muito elevado.

Também eu estou convencido de que os nossos representantes e demais instituições estão a fazer o melhor que sabem e podem e por isso têm a minha total confiança. Nomeadamente, o governo tem mostrado um sangue frio e uma capacidade de resposta aos problemas digna de registo. Como bem escreveu o Francisco Mendes da Silva, no Jornal de Negócios, o pragmatismo é uma excelente ideologia e o executivo está, por enquanto, a segui-la.

No entanto, todo este apreço e boa avaliação do governo não durará muito. A crise sanitária vai agravar-se e isso vai trazer notícias de problemas cada vez mais sérios na resposta do nosso sistema de saúde. Nem a imprevisibilidade de uma crise destas nem a perceção atual de que o governo está a fazer o melhor possível evitará uma quebra de confiança. Por outro lado, e mesmo que no combate ao vírus as coisas corram de forma excelente e até se consiga debelar o impacto na economia, a crise económica vai ser profunda e sentir-se-á a muito curto prazo.

Ou a natureza das pessoas mudará por causa deste episódio ou não há governo que não veja os seus índices de aprovação cair em flecha com o nível de desemprego e de redução de qualidade de vida a que vamos assistir.

Medidas muito duras vão precisar de ser implementadas e, claro, o descontentamento será generalizado. Há quem em função disso sugira um acordo de governo entre o PS e o PSD, o regresso do bloco central.

As intenções de quem defende esta solução são as melhores. A situação vai agravar-se, as medidas necessárias não vão ser fáceis de executar e ter no governo o máximo de representação iria ajudar. A isso acresce a ideia de que o PSD está frágil e que a contestação interna pode aumentar se Rui Rio não aproveitar a fragilidade que inevitavelmente o governo vai mostrar, o que pode condicionar a atitude do líder do partido.

A solução não é boa, contudo. Em primeiro lugar, não acredito que Rui Rio seja pressionável pela sua oposição interna e vai continuar a ser o estadista que tem sido neste processo, não contestando as medidas violentas que aí vêm e não cavalgando a contestação de uma forma irresponsável. Depois, a ida para o governo do PSD causaria um problema maior ao partido que correria o risco sério de ter uma cisão.

Mas a razão principal para rejeitar a ideia de um bloco central são as consequências políticas num futuro próximo. Se a falta de uma alternativa dentro do sistema já é um mal, imagine-se o que seria num país a debater-se com uma gigantesca crise económica.

Estaria a porta escancarada para os populistas e as soluções políticas radicais que tomariam conta da contestação e teriam resultados eleitorais futuros muito perigosos para a nossa democracia liberal.

Basta, aliás, ver a simpatia com que alguns setores do nosso país analisam as medidas que a China e outras ditaduras tomaram. Os comentários que procuram evidenciar as vantagens de regimes autoritários e mesmo totalitários em "certas circunstâncias".
Aguentámos a crise de 2008 mantendo o quadro partidário relativamente estável, dificilmente esta crise o deixará da mesma forma. Um bloco central ajudaria à implosão do sistema.

Tudo isto parece secundário neste momento. Nestas alturas tudo parece distante e a urgência tende a ser o único critério, isso leva a decisões que podem ser muito gravosas no médio prazo. Não nos esqueçamos de que temos futuro.

A verdade

No filme Uma Questão de Honra, o personagem interpretado pelo Jack Nicholson grita "tu não sabes lidar com a verdade". Lembrei-me disso ao ouvir alguns apelos para que se diga sempre a verdade sobre a real situação da pandemia. Isto tem uma razão de ser: quem os faz sabe que há uma enorme probabilidade de isso não acontecer. O crescimento do problema trará também acrescidas dificuldades de comunicação e de julgamento sobre o que será melhor ou não dizer às pessoas. Não poucas vezes as autoridades vão confrontar-se com o dilema de dizer a verdade, omitir ou, pura e simplesmente, mentir.

Por muito que custe, dizer sempre a verdade, nestas circunstâncias, pode não ser o melhor para a comunidade. Convém lembrar que até as mais avançadas democracias liberais preveem a possibilidade de censura em situações-limite.

A questão é: será que os portugueses vão continuar a conseguir lidar com a verdade de uma forma serena?

O Estado

Será que o que pensamos sobre o Estado e o papel que ele deve desempenhar na comunidade vai mudar com esta pandemia? Tenho muitas dúvidas fr que algo de essencial mude.

Por enquanto, não faltam comentários precipitados e com um sabor a contraponto ao moralismo que se criticava nos tempos da troika sobre os que há pouco tempo abominavam o Estado e agora correm para ele - como se as circunstâncias não fossem absolutamente excecionais.

Que fica, mais uma vez, claro que o Estado é insubstituível em tempos de crise e que deve estar bem apetrechado a todos os níveis para lidar com este tipo de situações ninguém duvida. Que esta perceção pode levar a comportamentos políticos futuros imprevisíveis é muito possível. Mas certa, certa, é a falta de memória das pessoas e a facilidade com que esquecem os tempos de aflição.

Ainda vamos falar muito deste tema.

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