Nasceu Margarita Carmen Cansino mas vive para sempre no imaginário de Hollywood como deusa de nome Rita Hayworth (1918-1987). Por trás da lenda feminina, fixada no célebre cartaz de Gilda - que aparece em Os Condenados de Shawshank, Ladrões de Bicicletas e Mulholland Drive -, nas fotografias pin-up e outros filmes mais ou menos dignos da sua sensualidade dramática, escondia-se uma mulher frágil cuja incursão precoce e involuntária no mundo do espetáculo se converteu numa existência profundamente atribulada..Hayworth fez sacrifícios pela imagem de estrela, passou por cinco casamentos, dançou para lá da sua vontade própria, refugiou-se no álcool e acabou diagnosticada (tarde demais em termos médicos, mas cedo demais na vida) com Alzheimer. Apesar de ter conquistado o título de princesa numa das suas trocas de alianças, a história da sua vida não é nenhum conto de fadas. A memória biográfica afigura-se bem longe da sua glamorosa imagem de indústria..No dia em que passam cem anos do nascimento, recordamos a estrela da Hollywood clássica percorrendo uma narrativa entre o grande ecrã e os bastidores. E nas entrelinhas dessa trajetória vale a pena perguntar, tal como fez o antigo diretor da Cinemateca, João Bénard da Costa, "se o cinema existiu para mulheres assim, ou se foi por causa de mulheres assim que o cinema existiu." O enigma não se decifra..O exotismo das origens.Filha de bailarinos imigrantes instalados em Nova Iorque, Margarita Cansino teve uma infância praticamente devotada ao treino da dança, por imposição do pai, artista espanhol de flamenco - a mãe, de ascendência irlandesa, tinha sido uma Ziegfeld girl. Mas esse treino, que nunca foi do seu agrado, tornou-se indevido quando o pai a tirou da escola e tentou fazer fortuna com ela, pintando-lhe os lábios de vermelho, vestindo-lhe roupas sexy e apresentando-a como seu par de dança em casinos e nightclubs, aos 12 anos. O mais grave é que este retrato abusivo no palco também se concretizava na intimidade familiar... Não admira que o talento de Rita (por esta altura já lhe tinham abreviado o primeiro nome) acabasse por se evidenciar no dito ambiente noturno. Especialmente perante o dono da Fox, Winfield Sheehan, com quem assinou contrato aos 17 anos, para ser bailarina figurante nas suas produções. Só num filme de Allan Dwan, Repórteres Rivais (1936), é que foi identificado, de passagem, o seu potencial de estrela. Não era ainda dona da vistosa e flamejante cabeleira ruiva..Essa fez explodir a sua imagem e foi uma das mudanças impostas pelo primeiro marido, Edward Judson, responsável pela criação desta sex symbol de Hollywood, então com apenas 19 anos. Tal viragem não correspondia, contudo, a uma nobre carreira cinematográfica. A morena passava assim a ruiva, trocava o apelido do pai (Cansino) pelo da mãe (Hayworth), bem como os estúdios da Fox pelos da Columbia, e até se submetia a uma penosa eletrólise para aumentar a testa. Tudo em nome de um sonho de fama que não era particularmente seu, mas do homem maduro e ambicioso com quem casara..Os tempos de dançarina latina começavam então a dar lugar à "America's Love Goddess", epíteto que ainda hoje ecoa. E Paraíso Infernal (1939), essa obra-prima das narrativas de aviadores de Howard Hawks, é o primeiro momento em que sua prestação sobressai de forma genuína (mesmo que num papel secundário), ao lado de Cary Grant e Jean Arthur..Gilda no horizonte.Depois disso, a ascensão de Rita Hayworth foi relativamente rápida. Na comédia Uma Loira com Açúcar (1941) - título de curiosa imprecisão capilar... -, assinada por Raoul Walsh, é ela o centro das atenções dos homens, numa história em que era suposto triunfar, sobre o seu magnetismo, a bondade da personagem de Olivia de Havilland junto de James Cagney. Logo depois, Sangue e Arena (1941), de Rouben Mamoulian, será o primeiro filme em que a vemos nas cores vivas do Technicolor, renovando o espírito latino no papel de uma sedutora espanhola, frente a Tyrone Power. Por sua vez, o musical Nunca Serás Rico (1941), de Sidney Lanfield, marca a sua estreia nas coreografias felizes partilhadas com Fred Astaire - que gabou muito a qualidade da jovem Hayworth -, colocando bem à vista a perfeição técnica da bailarina que não queria ser mais do que atriz. Outro musical, Modelos (1944), desta vez com Gene Kelly e realizado por Charles Vidor, acabaria por representar o degrau que lhe deu acesso ao filme, ou melhor, à sua personagem mais badalada, igualmente sob a direção de Vidor..Por essa altura, já Hayworth tinha causado o espanto geral com o seu segundo casamento (em 1943): o novo parceiro, o "génio" Orson Welles, não era propriamente compatível com a vulnerabilidade desta mulher fora da tela, como se viria a provar. Porém, foi no tempo dessa relação mediática que ela alcançou a glória através do tal golpe de asa chamado Gilda (1946), título que sustenta uma mitologia na história do cinema. Numa síntese atrevida, pode dizer-se que é um filme gravado na pedra por aquela emblemática performance do tema "Put the Blame on Mame", em que, num gesto voluptuoso de striptease, Hayworth faz descobrir a pele do braço que estava tapada por uma das suas compridas luvas pretas. É qualquer coisa de fascinante, na ambiência noir de um casino, e num papel também ele alicerçado na intensidade da atriz maturada, ao lado de Glenn Ford, com quem desenvolveu uma química singular..Pouco depois, surgia esse enigma frio intitulado A Dama de Xangai (1947), filme realizado e interpretado por Welles, que obrigou a então mulher a cortar o cabelo muito curto e pintá-lo de loiro para ser a femme fatale que se desvanece simbolicamente na famosa cena dos espelhos, com a sua imagem a multiplicar-se em função do "apagamento" do ser de carne e osso. Na sequência desta rodagem, puseram um ponto final no casamento - e contam-se pelos dedos as vezes em que o cinema foi um reflexo tão violento do estado de alma de um matrimónio..O mito Rita Hayworth ainda daria de si em algumas películas, como a réplica de Gilda, Os Amores de Carmen (1948), também de Vidor e com Glenn Ford, mas não mais a sua expressão da sétima arte, no movimento do corpo, do cabelo, das mãos e dos pés, conseguiria sobrepor-se às peripécias da sua vida. Que é como quem diz: seguiu-se outro mediático casamento, agora com o promíscuo príncipe Ali Khan - de quem teve a segunda das suas duas filhas (a primeira é de Welles) -, abrindo um novo e breve capítulo na conturbada biografia..Após três anos estava tudo terminado, e o seu regresso a Hollywood (com mais dois casamentos pelo meio) expôs uma decadência difícil de assistir, a princípio explicada apenas pelo alcoolismo. No seu livro de memórias, o ator Frank Langella, conta episódios referentes à rodagem de A Cólera de Deus (1972), de Ralph Nelson: "Chegada ao set, ela era uma verdadeira profissional. Estava pronta e ansiosa para fazer o seu melhor. Mas as falas não lhe saíam. Por mais que ela tentasse, não conseguia reter a mais simples das frases." Esta foi a derradeira produção que integrou, a muito custo e perante um clima de troça cruel face à tragédia interior que a consumia. Era o Alzheimer que se pronunciava numa mulher de 54 anos, mas não se podia saber..Por este imenso turbilhão, Rita Hayworth, que com uma frase resumiu a sua vida amorosa - "Todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda e acordaram comigo" -, estimulou a imaginação dos biógrafos. Verdade seja dita, numa filmografia com pouco mais de 60 títulos, não teve assim tantos à sua altura; mas sempre que pôde abrilhantou-os com uma aura inegável, definida num certo charme de "vulgaridade" associado a uma beleza misteriosa. Permanece nessa longínqua memória dos clássicos como um ícone do desejo, no gesto inefável de um striptease de luva. Ninguém mais o fez como ela.
Nasceu Margarita Carmen Cansino mas vive para sempre no imaginário de Hollywood como deusa de nome Rita Hayworth (1918-1987). Por trás da lenda feminina, fixada no célebre cartaz de Gilda - que aparece em Os Condenados de Shawshank, Ladrões de Bicicletas e Mulholland Drive -, nas fotografias pin-up e outros filmes mais ou menos dignos da sua sensualidade dramática, escondia-se uma mulher frágil cuja incursão precoce e involuntária no mundo do espetáculo se converteu numa existência profundamente atribulada..Hayworth fez sacrifícios pela imagem de estrela, passou por cinco casamentos, dançou para lá da sua vontade própria, refugiou-se no álcool e acabou diagnosticada (tarde demais em termos médicos, mas cedo demais na vida) com Alzheimer. Apesar de ter conquistado o título de princesa numa das suas trocas de alianças, a história da sua vida não é nenhum conto de fadas. A memória biográfica afigura-se bem longe da sua glamorosa imagem de indústria..No dia em que passam cem anos do nascimento, recordamos a estrela da Hollywood clássica percorrendo uma narrativa entre o grande ecrã e os bastidores. E nas entrelinhas dessa trajetória vale a pena perguntar, tal como fez o antigo diretor da Cinemateca, João Bénard da Costa, "se o cinema existiu para mulheres assim, ou se foi por causa de mulheres assim que o cinema existiu." O enigma não se decifra..O exotismo das origens.Filha de bailarinos imigrantes instalados em Nova Iorque, Margarita Cansino teve uma infância praticamente devotada ao treino da dança, por imposição do pai, artista espanhol de flamenco - a mãe, de ascendência irlandesa, tinha sido uma Ziegfeld girl. Mas esse treino, que nunca foi do seu agrado, tornou-se indevido quando o pai a tirou da escola e tentou fazer fortuna com ela, pintando-lhe os lábios de vermelho, vestindo-lhe roupas sexy e apresentando-a como seu par de dança em casinos e nightclubs, aos 12 anos. O mais grave é que este retrato abusivo no palco também se concretizava na intimidade familiar... Não admira que o talento de Rita (por esta altura já lhe tinham abreviado o primeiro nome) acabasse por se evidenciar no dito ambiente noturno. Especialmente perante o dono da Fox, Winfield Sheehan, com quem assinou contrato aos 17 anos, para ser bailarina figurante nas suas produções. Só num filme de Allan Dwan, Repórteres Rivais (1936), é que foi identificado, de passagem, o seu potencial de estrela. Não era ainda dona da vistosa e flamejante cabeleira ruiva..Essa fez explodir a sua imagem e foi uma das mudanças impostas pelo primeiro marido, Edward Judson, responsável pela criação desta sex symbol de Hollywood, então com apenas 19 anos. Tal viragem não correspondia, contudo, a uma nobre carreira cinematográfica. A morena passava assim a ruiva, trocava o apelido do pai (Cansino) pelo da mãe (Hayworth), bem como os estúdios da Fox pelos da Columbia, e até se submetia a uma penosa eletrólise para aumentar a testa. Tudo em nome de um sonho de fama que não era particularmente seu, mas do homem maduro e ambicioso com quem casara..Os tempos de dançarina latina começavam então a dar lugar à "America's Love Goddess", epíteto que ainda hoje ecoa. E Paraíso Infernal (1939), essa obra-prima das narrativas de aviadores de Howard Hawks, é o primeiro momento em que sua prestação sobressai de forma genuína (mesmo que num papel secundário), ao lado de Cary Grant e Jean Arthur..Gilda no horizonte.Depois disso, a ascensão de Rita Hayworth foi relativamente rápida. Na comédia Uma Loira com Açúcar (1941) - título de curiosa imprecisão capilar... -, assinada por Raoul Walsh, é ela o centro das atenções dos homens, numa história em que era suposto triunfar, sobre o seu magnetismo, a bondade da personagem de Olivia de Havilland junto de James Cagney. Logo depois, Sangue e Arena (1941), de Rouben Mamoulian, será o primeiro filme em que a vemos nas cores vivas do Technicolor, renovando o espírito latino no papel de uma sedutora espanhola, frente a Tyrone Power. Por sua vez, o musical Nunca Serás Rico (1941), de Sidney Lanfield, marca a sua estreia nas coreografias felizes partilhadas com Fred Astaire - que gabou muito a qualidade da jovem Hayworth -, colocando bem à vista a perfeição técnica da bailarina que não queria ser mais do que atriz. Outro musical, Modelos (1944), desta vez com Gene Kelly e realizado por Charles Vidor, acabaria por representar o degrau que lhe deu acesso ao filme, ou melhor, à sua personagem mais badalada, igualmente sob a direção de Vidor..Por essa altura, já Hayworth tinha causado o espanto geral com o seu segundo casamento (em 1943): o novo parceiro, o "génio" Orson Welles, não era propriamente compatível com a vulnerabilidade desta mulher fora da tela, como se viria a provar. Porém, foi no tempo dessa relação mediática que ela alcançou a glória através do tal golpe de asa chamado Gilda (1946), título que sustenta uma mitologia na história do cinema. Numa síntese atrevida, pode dizer-se que é um filme gravado na pedra por aquela emblemática performance do tema "Put the Blame on Mame", em que, num gesto voluptuoso de striptease, Hayworth faz descobrir a pele do braço que estava tapada por uma das suas compridas luvas pretas. É qualquer coisa de fascinante, na ambiência noir de um casino, e num papel também ele alicerçado na intensidade da atriz maturada, ao lado de Glenn Ford, com quem desenvolveu uma química singular..Pouco depois, surgia esse enigma frio intitulado A Dama de Xangai (1947), filme realizado e interpretado por Welles, que obrigou a então mulher a cortar o cabelo muito curto e pintá-lo de loiro para ser a femme fatale que se desvanece simbolicamente na famosa cena dos espelhos, com a sua imagem a multiplicar-se em função do "apagamento" do ser de carne e osso. Na sequência desta rodagem, puseram um ponto final no casamento - e contam-se pelos dedos as vezes em que o cinema foi um reflexo tão violento do estado de alma de um matrimónio..O mito Rita Hayworth ainda daria de si em algumas películas, como a réplica de Gilda, Os Amores de Carmen (1948), também de Vidor e com Glenn Ford, mas não mais a sua expressão da sétima arte, no movimento do corpo, do cabelo, das mãos e dos pés, conseguiria sobrepor-se às peripécias da sua vida. Que é como quem diz: seguiu-se outro mediático casamento, agora com o promíscuo príncipe Ali Khan - de quem teve a segunda das suas duas filhas (a primeira é de Welles) -, abrindo um novo e breve capítulo na conturbada biografia..Após três anos estava tudo terminado, e o seu regresso a Hollywood (com mais dois casamentos pelo meio) expôs uma decadência difícil de assistir, a princípio explicada apenas pelo alcoolismo. No seu livro de memórias, o ator Frank Langella, conta episódios referentes à rodagem de A Cólera de Deus (1972), de Ralph Nelson: "Chegada ao set, ela era uma verdadeira profissional. Estava pronta e ansiosa para fazer o seu melhor. Mas as falas não lhe saíam. Por mais que ela tentasse, não conseguia reter a mais simples das frases." Esta foi a derradeira produção que integrou, a muito custo e perante um clima de troça cruel face à tragédia interior que a consumia. Era o Alzheimer que se pronunciava numa mulher de 54 anos, mas não se podia saber..Por este imenso turbilhão, Rita Hayworth, que com uma frase resumiu a sua vida amorosa - "Todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda e acordaram comigo" -, estimulou a imaginação dos biógrafos. Verdade seja dita, numa filmografia com pouco mais de 60 títulos, não teve assim tantos à sua altura; mas sempre que pôde abrilhantou-os com uma aura inegável, definida num certo charme de "vulgaridade" associado a uma beleza misteriosa. Permanece nessa longínqua memória dos clássicos como um ícone do desejo, no gesto inefável de um striptease de luva. Ninguém mais o fez como ela.