A direita está triste. O que tem a direita?
"Em suma, a direita portuguesa, comedida, digerível e aprazível ainda não saiu do armário" (Maria de Fátima Bonifácio, in Público, 30/11/2020.) A princesa está triste... O que tem a princesa? (Rubén Dario, "Sonatina", tradução de João Albuquerque.)
Dizem-nos que a direita é uma Bela Adormecida, presa nas teias de um cativo sono desde certo funesto dia de abril. Os anos que governou não lhe bastam. As leis que fez, as nomeações que decidiu, as mudanças que desencadeou nos seus anos de governo enrolam-se no seu penar como os ouros e os tules do palácio que nestes tempos se fez sua prisão.
Desgraçada princesa dos olhos azuis! Está presa em seus ouros e presa em seus tules, na marmórea prisão do palácio real (Rubén Dario, ibidem).
A direita está triste. A direita padece. Dotada de um magnífico apetite de viver, de uma fúria criadora igual ao universo, vê-se há anos confinada a um espaço medíocre de constrangimento e de vergonha. A direita, como o amor maldito, não ousa dizer o seu nome. Procede por alusões, por imagens, suspira timidamente e espera. Espera sem desfalecer o príncipe da Ventura, esse, O feliz montador que te adora sem ver-te, e que chega de longe, vencedor da Morte, para te dar um beijo e acender-te a paixão (Rubén Dario, ibidem).
Digamo-lo sem rodeios: a direita quer sair do armário. Fazer o seu out. Libertar-se. Perder inibições. A direita quer ficar desenvolta. Como um adolescente que exige aos pais a chave de casa, a direita quer dizer adeus aos tabus que a limitam e oprimem. Se para isso for preciso sair à noite com skinheads, seja.
Se para isso for preciso confinar ciganos e castrar pedófilos, seja. Tudo menos a hipocrisia de viver às escondidas com os seus desejos. Tudo menos a ditadura de uma moralidade burguesa que nos impede de rejeitar os que estão fora da nossa cultura, de punir os que estão fora da nossa moral, de confinar os que estão fora da nossa tradição.
Assim como o cavaleiro andante se aproxima, no poema de Antero de Quental, das portas de ouro do Palácio da Ventura, assim julga a princesa ouvir da fada madrinha as palavras deslumbradas da esperança.
Diz a fada madrinha: "Silencia, princesa; para cá se encaminha, a cavalo, depressa, com a espada no cinto e no punho o falcão o feliz montador que te adora sem ver-te" (Rubén Dario, ibidem).
A arte é uma promessa de felicidade, dizia Stendhal. Alguém haveria de chegar um dia com a palavra que libertasse a princesa da sua prisão dourada. A princesa renega o seu palácio de ouro e de tule, renega todos estes anos em que viveu aprisionada, mesmo que governasse, alheada de si mesmo, ainda que liderasse, triste, embora brilhasse.
Era outra coisa, afinal, que queria a princesa, e nós não sabíamos. Como pudemos não compreender? Foi necessário que a ventura de um príncipe adivinhasse, qual o motorista Ambrósio do anúncio de chocolates, qual era o desejo que a princesa não ousava formular, inibida que estava pela ditadura sem dó das esquerdas impiedosas. E assim: "O espalhafato de Ventura pode bem ser a única via susceptível de criar condições para forçar a entrada e estadia na Cidade de uma direita emancipada, serena, desempoeirada e orgulhosa" (Maria de Fátima Bonifácio, in Público de 30/11/2020).
Maria de Fátima Bonifácio tem razão: o Chega está a ajudar a revelar a direita a si própria.
(As citações de Rubén Dario vêm de O Sátiro Surdo, Poesia e Prosa de Rubén Dario, tradução de João Albuquerque, ed., Labirinto, Fafe, 2020)
Escritor e diplomata