À descoberta da banda desenhada portuguesa
Um livro de 1872, requisitado à Biblioteca Nacional, encontra-se numa vitrina. São os deliciosos Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa, 16 páginas apenas, é certo, mas este terá sido o primeiro livro de banda desenhada editado em Portugal. É a obra mais antiga aqui exposta. "Bordalo não foi o primeiro autor português de BD mas é uma figura tutelar, é o patrono da BD portuguesa, com uma obra muito pessoal e original", explica Pedro Vieira de Moura, o comissário da exposição "Tinta dos Nervos", ontem inaugurada no Museu Berardo, em Lisboa.
A exposição dedicada à banda desenhada contemporânea não pretende ter uma abordagem histórica, mas Pedro Moura achou importante ter aqui dois autores mais antigos: Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) e Carlos Botelho (1899-1982). Os outros 39 autores presentes estão vivos, embora nem todos em actividade, e participaram activamente na escolha das peças a apresentar. "Não quis mostrar a banda desenhada como uma arte de massas, de entretenimento, ligada ao infanto- -juvenil. Pelo contrário, procurei autores que podemos designar como alternativos e que fazem uma BD mais artística ou intelectual, para adultos."
Pedro Moura sabe que está a falar para uma minoria: "Não podemos falar de grande público de banda desenhada, em Portugal. Isso não existe." Mas, mesmo que nos últimos anos haja cada vez menos espaço em revistas e jornais para esta arte, continua a haver uma grande produção de livros e de fanzines de grande qualidade. "Em termos artísticos há autores muito fortes, originais, criativos, que não nos envergonham de maneira nenhuma em relação ao que se faz lá fora", garante.
Aqui podemos ver a obra de Isabel Lobinho, uma das poucas mulheres autoras de BD em Portugal nos anos 70, o Diário Rasgado, de Marco Mendes, o basfond do Porto segundo o olhar de Janus, a original banda desenhada abstracta de Cátia Serrão, ao lado de autores mais conhecidos do grande público, como André Lemos, António Jorge Gonçalves, Diniz Conefrey, Filipe Abranches, João Fazen- da, Miguel Rocha, Nuno Saraiva, Pedro Zamith ou Richard Câmara. Além das tiras, dos livros e das fanzines, há, sempre que se justifique, filmes e outros objectos relacionados com a obra dos autores. E ainda cinco murais belíssimos feitos de propósito para as paredes do museu.
Esta é uma exposição que exige tempo a quem a visita. Não se pode só passar pelas salas. É preciso olhar com atenção os pormenores, ver de perto. Pedro Moura sabe de antemão que aqueles que a maioria dos que irão ali serão já conhecedores de banda desenhada. Mas espera que o facto de estar no Museu Berardo e de a entrada ser livre lhe traga visitantes inesperados - aqueles que não conhecem os autores e que poderão ficar surpreendidos com o que ali encontram: "As pessoas ficarão com uma noção muito mais ampla do que é a banda desenhada portuguesa e do que é a banda desenhada de uma maneira geral."
E desabafa: "Ainda encontramos muita gente que diz que não lê banda desenhada. Não se percebe. Se eu disser que não vejo cinema ou que não ouço música, todos acham que é uma tolice. Mas ainda há muitos preconceitos em relação à BD. Infelizmente, com a banda desenhada ainda precisa deste discurso de defesa."
A exposição "Tinta dos Nervos" pode ser visitada até 27 de Março.