Manuel João Vieira. "A democracia revelou-se uma pessoa diferente do que imaginámos" 

O músico Manuel João Vieira é um dos protagonistas do ciclo Abril em Lisboa, para o qual criou o concerto Nostalgia e Utopia, composto por 20 canções do período pré e pós-revolução.
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O título do espetáculo não surgiu por acaso, porque afinal é nestas duas palavras, nostalgia e utopia, que se pode resumir grande parte da história contemporânea de Portugal. O concerto do músico dos Ena Pá 2000 e dos Irmãos Catita vai ser um dos pontos altos da programação do ciclo Abril em Lisboa, concebido pela EGEAC para comemorar o dia da Liberdade, apesar das limitações impostas pela pandemia. Mas mais que um mero concerto, Nostalgia e Utopia pretende ser um momento de reflexão sobre as utopias falhadas do Portugal moderno, o Estado Novo e a própria revolução, e como estas conduziram a uma nostalgia, cada vez mais acentuada pela "distopia em que atualmente vivemos", como explica Manuel João Vieira nesta entrevista ao DN. O alinhamento será composto por 20 temas pré e pós-revolução, entre fados revolucionários, canções patrióticas do tempo da ditadura, versões de cantautores como Zeca Afonso ou José Mário Branco ou temas "revolucionariamente absurdos" do próprio Manuel João Vieira, que está acompanhado em palco de um naipe de convidados de luxo, composto por Carlos Barreto no contrabaixo, Fausto Ferreira no piano, Alexandre Frazão na bateria, Arménio Melo na guitarra portuguesa, Vital Assunção na viola, Nuno Reis no trompete e Francisco Ferro nos coros e harmónica. Decorre no Cineteatro Capitólio, Lisboa, na manhã de 25 de Abril, pelas 11:00. A entrada é livre, mas com lotação limitada e sujeita a levantamento de bilhetes nos dias 24 e 25, no Cinema São Jorge.

Como é que apresentaria este espetáculo ao público?
O alinhamento será composto por 20 temas, divididos por várias temáticas. Vou cantar cinco fados relacionados com o 25 de Abril e outros com a luta de classes, entre os quais um fado anarquista do início do século XX. Vou também recuperar cinco canções dos cantautores de Abril, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Zeca Afonso e ainda um tema sobre a reforma agrária do Vitorino. Depois, há também uma parte dedicada à música de exaltação patriótica do tempo da ditadura, em que incluo temas como o Pela Pátria, uma canção da Legião Portuguesa, recuperada a partir de uma partitura que encontrei nas coisas do meu pai, o Vou-me Embora Moçambique ou o Português, uma música sobre esse mito da igualdade racial no império, ainda hoje tão em voga. E depois haverá uma última parte com temas originais meus, apesar de ter poucas músicas sobre questões sociais ainda consegui escolher algumas como o Rap Alentejano, dos Ena Pá 2000, ou o Lenine, uma música sobre a desilusão posterior à queda do muro de Berlim.

E de que forma a utopia rima com nostalgia?
Essa é a reflexão que pretendo fazer neste espetáculo, recordando, através da música, essas duas utopias aparentemente antagónicas, a do Portugal pré-25 de Abril, ainda hoje defendida por alguns, e a da revolução, quando tudo estava em aberto. E de certa forma compará-las com a distopia em que vivemos desde os anos 80 e é sem dúvida a que mais me incomoda. Aliás, é esse desmoronar das utopias que leva ao surgimento de grupos como os Ena Pá 2000 ou os Irmãos Catita, porque a subversão começa a ser só possível através do humor.

Há, portanto, uma linha temporal ao longo do espetáculo?
A ideia era mesmo essa, a de tentar construir uma narrativa que unisse estas canções de forma temporal, mas de uma forma quase ficcional.

Como assim?
Como se o nosso presente fosse, atualmente, o período do 25 de Abril e tudo o que aconteceu a partir daí ser uma espécie de previsão sobre um futuro distópico, incluindo a realidade na qual hoje vivemos.

Como é que analisa todas estas canções, à luz desse futuro distópico em que afinal vivemos?
Todas têm uma mensagem atual, o que significa que passado tanto tempo os problemas da sociedade continuam a ser os mesmos. Veja-se a canção sobre a alegada igualdade racial do império e como o racismo continua a ser, hoje, um dos temas em debate em Portugal.

É algo que nunca vai mudar, na sua opinião?
Lembro-me que tive um padrinho que, a dada altura, tentou criar um sindicato para as prostitutas, para lhes dar proteção laboral. Dou este exemplo para demonstrar que as coisas só mudam se metermos mãos à obra para as mudar, mas hoje é muito complicado fazer-se algo ao nível da unidade e da consciência de classe, porque todos fomos transformados em pequenos empresários individuais, apenas preocupados com os seus interesses. Por outro lado, as pessoas podem vir a ser obrigadas a mudar e neste momento está a ocorrer um processo de transformação, ao nível do meio ambiente, que poderá levar ao surgimento de uma nova ordem social, mas enquanto isso não acontece continuamos com as duas correntes do costume.

E que são?
Uma é de base mais igualitária entre todas as pessoas e a outra defende o mérito, que basicamente apenas pretende manter as mesmas pessoas a mandar. Terá forçosamente de surgir uma terceira via, mas que ainda não sei qual é. Mas para que isso aconteça teremos também de criar novas utopias.

Como olha hoje, em plena distopia, para a utopia do 25 de Abril?
O 25 de Abril está para a vida pública e social do país como a paixão está para o amor. Ou seja, a democracia revelou-se, afinal, uma pessoa diferente daquilo que imaginámos e hoje já estamos cada um para seu lado.

E que recordações tem desse período?
Tinha apenas dez anos, mas tenho uma recordação muito forte, do pulsar de uma multidão apaixonada e cheia de esperança no futuro, como a que invadiu Lisboa no dia 1º de Maio de 1974. Na altura vivia em Campo de Ourique, que era uma espécie de aldeia do Noddy, onde toda a gente se conhecia e ver aqueles hectares e hectares de gente, toda junta por uma causa comum, provocou em mim uma impressão muito forte.

Este espetáculo poderá algum dia vir a ser transformado num disco?
Até poderia ser, era apenas uma questão de vermos os arranjos, mas alguns destes temas já estão presentes noutros discos. No caso das versões do Zeca e do José Mário, gosto muito de as tocar e se calhar até devia ter posto mais algumas no alinhamento do espetáculo, mas não sei se me sinto à altura para as gravar, até porque me sinto mais confortável quando canto coisas mais a gozar. E se calhar por isso, quando canto coisas mais sérias, as pessoas nem sempre percebem e há sempre alguém a rir-se, o que por vezes não é muito agradável.

Mas, como disse antes, o humor também pode ser revolucionário, certo?
Sem dúvida e tenho até bastantes músicas que o são, como o Portugal Alcatifado, que fiz por ocasião da apresentação da minha candidatura à presidência da república. São é revolucionariamente absurdas, mas isso só acontece porque o país onde vivo é, ele próprio, um absurdo, tal como a personagem que uso em palco é também um bocadinho deficiente mental, reconheço. Gostaria de não ser só essa personagem, mas é-me muito difícil fugir dela.

Porque não o deixam ou porque não quer?
Um pouco pelas duas razões. A verdade é que não sei muito bem onde me hei de colocar quando canto coisas bonitas, algo sérias ou mais tristes e a canção humorística acabou por se transformar para mim num refúgio.

dnot@dn.pt

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