"A covid-19 veio dar uma lição de humildade aos médicos"

Ao fim de dois anos, António Sarmento, diretor do Serviço de Infecciologia do Hospital São João, onde foi recebido um dos dois primeiros doentes com covid-19 em Portugal, conta ao DN como foi esse tempo, entre o medo do desconhecido e a angústia de decidir perante a incerteza. "Tivemos de mudar o paradigma e encontrar a bonança no meio da tempestade". Mas espera que todos tenhamos aprendido a lição.
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2 de março de 2020. O país ficava a saber que o novo coronavírus tinha entrado em Portugal por doentes infetados que chegaram à região Norte vindos de Itália, um dos primeiros países europeus a ser afetado pelo SARS CoV-2. Neste mesmo dia, os dois primeiros casos davam entrada nos hospitais de Santo António e de São João, no Porto. Em Lisboa, só alguns dias depois é que o Hospital Curry Cabral viria a diagnosticar e a internar os primeiros casos.

Quem estava no terreno sabia que rapidamente o vírus se iria espalhar e as unidades de saúde organizavam-se. A 11 de março a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretava estado pandémico no mundo. E, no dia 13, Portugal entrava no seu primeiro confinamento geral, para tentar evitar a transmissão em massa e as realidades que chegavam de Itália ou de Espanha - milhares de doentes a necessitar de ajuda com os serviços de saúde já em rutura.

Se para quem assistia à distância ainda é difícil esquecer as imagens que chegavam via meios de comunicação social ou pelas redes sociais, para quem era profissional de saúde e vivia momento a momento in locco esta memória não se apaga. "Tenho tudo muito presente, não preciso de fazer qualquer esforço de memorização", confessa ao DN António Sarmento, diretor do Serviço de Infecciologia, do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ), onde foi recebido o segundo doente a ser diagnosticado com covid-19 no país, e posteriormente milhares de outros, já que é o serviço de referência para doenças emergentes para toda a região acima de Leiria, incluindo Coimbra - o outro centro, para a região que vai de Leiria até ao Algarve, está em Lisboa no serviço de infecciologia do Hospital Curry Cabral, que integra o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Dois anos depois, e quando, finalmente, o vírus e a pandemia parecem começar a dar tréguas ao mundo, o médico António Sarmento, que já vai no seu 43.º ano de prática clínica e no seu 44.º ano de professor, assume os medos e as angústias que sentiu e observou nos primeiros tempos, fala dos períodos pesados e duros que o seu serviço e o seu hospital passaram, mas com a consciência que "outras unidades, estou a pensar na do Vale do Sousa, sofreram muito mais do que nós". Dois anos depois, António Sarmento assume que, afinal, a pandemia também trouxe desafios, satisfação e recompensas à medida que "íamos percebendo que estávamos a conseguir resolver algumas situações". Mas não tem dúvidas quando afirma que o vírus, "uma pequena partícula de ARN, que poderia ser destruída em laboratório, com uma pequena gota de álcool, veio dar uma lição de humildade aos médicos. Pensávamos que a medicina já podia fazer e resolver tudo, mas o novo coronavírus veio mostrar que não, deixando o mundo a tremer".

Para o médico, que admitiu ter tido a honra de ser o primeiro português escolhido para a vacinação, um dos grandes desafios da pandemia foi a testagem dos "limites de cada pessoa, quer fossem médicos, enfermeiros ou outros profissionais de saúde" e de como se exerce a profissão. A pandemia veio mudar a medicina, mostrando que para se ser médico não basta gostar da biologia humana, é preciso ter vocação, entrega e empenho", mas veio também "mudar a sociedade em geral". Pelo menos, assim o espera, "se não mudou é muito mau sinal, quer dizer que o ser humano não tem capacidade para aprender, ficando condenado à auto-extinção. Só sobrevivemos quando aprendemos com os erros", argumenta na conversa com o DN, reforçando: "A covid-19 veio dar-nos a noção da nossa própria fragilidade. E isto tem de nos tornar mais humildes e facilitar o relacionamento entre todos".

Como médico, sente que a "pandemia trouxe também a sensação de utilidade e o sentido da importância da intervenção". Como cidadão, espera que estes tempos "tenham trazido a cada um de nós um novo estímulo para o futuro: que nos viremos cada vez mais para o bem comum e que rejeitemos cada vez mais o individualismo, que, na minha opinião, é suicida. Espero que as pessoas tenham percebido que se se fecharem em si próprias, perante um quadro de catástrofe, estão a colocar-se em risco, bem como à sua comunidade". Olhando para o mundo de hoje, é preciso que "o ser humano respeite cada vez mais o Outro e a própria Natureza. Há uma série de problemas que o mundo tem de resolver no futuro." Até porque, sustenta, se há algo que o SARS CoV-2 demonstrou é que "os vírus não fazem distinção. Tanto podem matar os poderosos como os mais pobres".

Estamos a meio da manhã de quarta-feira. António Sarmento marca a conversa para depois de algumas das tarefas obrigatórias como diretor de serviço. E ao falar não esconde como para si "o ser médico continua a ser a melhor profissão do mundo". Diz ter a sorte de trabalhar num hospital e de liderar uma equipa com "profissionais muito entusiastas", havendo pessoas que tem mesmo de salientar, porque "foram decisivas desde a altura em que começámos a ver como os casos se estavam a propagar na China". António Sarmento dá nomes, como o da colega Margarida Tavares (nomeada no ano passado pelo governo para a direção do Programa Nacional de Prevenção e Controlo das Doenças Sexualmente Transmissíveis e da Infeção pelo VIH). "Foi decisiva desde o primeiro minuto na organização do serviço e de todo o hospital. Esteve sempre disponível as 24 horas do dia".

Como esta médica, muitos outros no São João fizeram o mesmo, mas, refere, também se deveu a uma certa dinâmica e espírito de equipa criado no hospital. "Deve-se muito ao nosso conselho de administração, nomeadamente ao professor Fernando Araújo. Não tenho de elogiar ninguém, mas isto tem de ser dito. Foi um conselho que fez sentir aos profissionais que estava presente e que, por mais trabalho que tivéssemos, por mais casos ou internamentos, não iríamos entrar em rutura".

Quando perguntamos se sente que foi este espírito que fez com que tenha sido reconhecido por muitos que o São João terá feito a diferença no combate à pandemia, diz que sim. "O presidente do conselho de administração tanto me atendia às 3.00 da tarde como às 3.00 da manhã. Sabíamos que em caso de aflição tínhamos sempre apoio de cima e foi isso que todos tentámos recriar dentro dos serviços em relação aos que estavam dependentes de nós. Esta acessibilidade foi muito importante e isso deu aos profissionais um grande entusiasmo e força".

Assume também que se o "seu" hospital fez a diferença foi porque cedo se preparou para a tempestade que aí vinha. Ou se quisermos, porque um ano antes, e longe de imaginarem o que estava para chegar, "decidimos que não queríamos ser um centro de referência para doenças emergentes só no papel", afirma.

"Quem governa pode pensar que basta colocar as coisas no papel que depois tudo surge espontaneamente, sem se gastar dinheiro ou sem esforço algum, mas não é assim. Nós éramos um centro de referência no papel, mas faltava-nos muita coisa para o sermos na prática. E começámos por nos estruturarmos e organizarmos neste sentido. Criámos mesmo uma unidade para doenças emergentes dentro do serviço e candidatámo-nos a alguns fundos para recebermos financiamento e aumentarmos a nossa capacidade para darmos uma resposta clínica ainda mais vigorosa. Quisemos criar também capacidade para investigar, porque as pandemias vão continuar a aparecer no futuro, e para formar ainda mais".

Portanto, quando no final de dezembro de 2019 se começou a perceber a facilidade com que na China a população se estava a contagiar e a dimensão que a infeção estava a atingir, "tivemos a certeza absoluta que o vírus chegaria à Europa e a Portugal em grande escala também", recorda.

E quando os primeiros casos chegaram "tínhamos tudo planeado e preparado. No início de janeiro, começámos a organizar protocolos, circuitos, avaliações de gravidade e a elaborar um plano de antecipação, com uma cadeia hierárquica muito bem definida, porque nestas situações é importantíssimo que se saiba quem é responsável pelo quê. Apresentámos o plano ao conselho de administração, que depois o trabalhou connosco. Isto foi muito importante, porque permitiu que não se improvisasse. Uma semana antes, e de acordo com a evolução da doença, sabíamos o que havia a fazer. Isto também nos deu alguma tranquilidade".

Uma tranquilidade que, mesmo assim, não conseguiu dissipar o medo e a angústia que qualquer profissional sentiu nos primeiros tempos. "Era o medo e a angústia do desconhecido", porque para "um médico não há maior angústia do que ter um doente na nossa frente e não saber como o podemos tratar", conta, continuando: "Os doentes chegavam e havia que tomar decisões. Tinha de ser" , mas tal não aconteceu só em Portugal.

Foi assim por todo o lado. Por isso, quando se olha hoje para trás percebe-se que houve erros. "Não por culpa de ninguém, mas por não se conhecer a doença". "Dou-lhe um exemplo, logo a meio de março a OMS emite linhas de orientação para o tratamento de doentes com covid-19 e retira os corticosteroides, porque estes fármacos não foram benéficos no tratamento de infeções com outros coronavírus, mais tarde estudos internacionais e independentes mostraram que, afinal, eram eficazes contra o SARS COV-2. A OMS teve de fazer nova orientação para os recomendar. Foi assim, fomos aprendendo".

Outro exemplo de erro que diz ter sido percebido aos poucos, "foi a barreira física criada pelo equipamento excessivo que se usava no início, por não sabermos como era feito o contágio". António Sarmento recorda: "Tínhamos de vestir aqueles fatos complicados, botas, dois pares de luvas, um carapuço enorme, máscaras, dava tanto trabalho e consumia tanto material, que acabou por fazer com que os profissionais acabassem por ir menos vezes aos doentes. Era fisicamente impossível".

Hoje já não é assim, mas o exemplo leva-o a outra angústia, à da solidão dos doentes ou dos seus familiares. "A maior angústia de um doente em estado de fim de vida, mas que está consciente, é pensar que vai morrer sozinho. Isto é universal. O doente deseja sempre ter alguém a seu lado, nem que seja um desconhecido. E houve muita gente a morrer só. Aos profissionais, custava muito ver isto", desabafa.

Mas a angústia da solidão e o medo passaram também por quem não foi para os cuidados intensivos ou por quem resistiu ao vírus, embora tenha assistido a tudo nas enfermarias. "Pensavam que estavam na linha de toda esta desgraça, que a eles também lhes iria acontecer o mesmo. E isso deve ter sido horrível". A angústia da solidão também chegava aos profissionais sempre que tinham de falar com um familiar. "Foi um período muito difícil. Não havia visitas, os familiares deixavam os doentes sem saberem quando os poderiam voltar a ver".

E mais difícil foi quando havia que libertar da angústia e do desalento alguém da própria equipa. "A mim, como responsável de uma equipa, era das coisas que mais me preocupava, porque as pessoas só podem ser tratadas por pessoas. E se quem as trata não está bem, está instável ou deprimida, o resultado é pior". Aos poucos, conta, aprendemos onde e como ir buscar a força que às vezes faltava.

"Começámos a ter noção que estávamos a conseguir resolver algumas situações e, cada vez que resolvíamos mais uma, gerava-se um espírito de esperança e de alegria enorme. Assumimos que tínhamos de mudar o paradigma. E em vez de fazermos como diz o ditado popular - "a seguir à tempestade vem a bonança" - criámos momentos de bonança dentro da tempestade. Senão, não aguentávamos. Foi importante para mantermos a nossa sanidade mental e as nossas capacidades para ajudar os doentes".

Ao fim de dois anos, António Sarmento, que foi o primeiro português a ser vacinado, em dezembro de 2020, confessa não ser capaz de olhar para trás e de dividir a pandemia em casos, aqueles que lhes deram alegrias ou imensa tristeza, mas sim em momentos, "uns pesados e muito duros, outros reconfortantes e de recompensa", admitindo até que a melhor recompensa não foi o reconhecimento oficial, mas sim o que chegava dia-a-dia, dentro ou fora do hospital. "Houve pessoas que me agradeceram no café ou na mercearia pelo trabalho que estávamos a fazer no São João. Esta foi a melhor das recompensas".

A pandemia veio trazer um pouco de tudo, mas sobretudo a consciência de que a medicina é uma profissão que só pode ser exercida com vocação. Aos 66 anos, António Sarmento mantém-se à frente do Serviço de Infecciologia do São João, e diz que até aos 70 tem tempo de pensar o que vai fazer a seguir. Por agora, há uma questão que o assalta quase diariamente: "É saber onde sou mais útil".

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